sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tudo é Vida, que da Morte nada se sabe

Olho o dia e não augura. A cor de chumbo rodeia  todas as coisas, como se alguém ponha a uso  um pincel mal lavado, ainda a suar restos de preto,  numa aguada que condensa em cinza violento e entristece a paisagem. Impressiona esta saturação de humidade, o ar parado de silêncio, a morrinha a fazer cama. Lá fora, há flores abertas, branco arrependido e pesado de gotas, foi por engano, desculpem, pensávamos que era primavera, para o ano já não acontece. E a nossa experiência de florações extemporâneas a recear do milagre. Não raro, custa a vida às pobrezinhas que arriscaram delicadezas de inverno. E, contudo, estão ali, a corola a pendurar, cabisbaixas. Quebradas,  florescem na ponta do arco breve que o lápis estranha. Perplexo, fica a remoer indecisões, como é que se desenha este arqueado de vergonha de flor; o papel em contraditório, a aguçar frenesins, então... cuidado aí com essa ponta, estás-me a escalavrar  o liso.  E as flores que não sabem nada disto, acachapadas de chuva, Deus, o peso de cada gota.
Em breve, a escuridão vai engolir a paisagem e a brancura dos cálices esvai, primeiro pardacenta, depois em negrura indistinta. Talvez as flores durmam sem sonhos, não tenham pesadelos de água, se desviem rindo de fatalismos e futuros macabros. Sejam apenas elas num hiato de existência. Ou existam parcamente, amodorradas de silêncio gelado, arrefecidas de seiva. E quando pensava nas friezas de flor, em raízes engadanhadas e a tremer agruras sob a terra, a campainha desinquietou-me o pensamento.
 Vou correndo que a minha campainha pouco toca e tenho que aproveitá-la. Abro a porta e dou de caras com uns óculos quase submersos por cabelos desalinhados, em conjunto hipnótico com as lentes, resvalando em monocronia, para cima e para baixo, os olhos a piscarem lá atrás de tudo.  Apetece-me deitar mão ao cabelo invasivo, mas a boca começa imediatamente a abrir e fechar e desvia-me o propósito. Fala. Deve estar falando. Para mim. Os olhos por detrás dos óculos confirmam, é comigo. Não fixo as palavras e elas soltam-se e giram por ali sem nexo, em volta de nós duas.  Estou vidrada na boca que abre e fecha, lábios que se alongam e encurtam quase em assobio, deixando ver dois dentes lascados na ponta. Perto.  De cada vez que ela fala os dentes mostram-se. Está séria, quase pesarosa, mas os dentes lascados são sorriso que me descansa. Que será que diz ?!  Dou por mim pensando que um baton de cieiro lhe resolvia o problema dos lábios esbranquiçados, uma greta a meio, mais funda, tocada de sangue. De repente, o som ligado, a vizinha sabe, foi professora primária, não acha que a menina tem um trauma?
Fico parvamente a tentar recuperar a conversa e ponho a uso o meu ar de vizinha (próximo) paramentado de professora (um bocadinho mais de empáfia). E o que havera de ser?! Bom, parece que, antes, a netinha sabia ver horas e agora, não.  E ela volta, a vizinha não acha que a menina precisa de ir ao psicólogo? O meu filho tem uma boa caixa, não paga quase nada...é que a menina anda com medo e a professora pergunta-lhe sempre as horas agora que sabe que ela não é capaz de as ver (a malandra da professora). E patati e patatá.

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