Rodei
o manípulo do vidro e quando o polícia se debruçou apercebi-lhe a ordem no
movimento seco dos lábios, senhor condutor, os documentos do veículo se faz
favor. E a minha mão independente apressando-se a satisfazer o pedido. Ele confirmou
os dados do automóvel girando-lhe à volta e atardou-se depois na carta de
condução enquanto, sem uma palavra,
enviesava olhares para o meu companheiro. Enquanto isso eu sentia o suor
a escorrer-me costas abaixo, mas o homem continuava plácidamente sentado a meu
lado. O Guarda entregou-me os documentos do carro e ficou de carta na mão a
olhar-nos, tenho ordens para verificar a identificação de toda a gente, você
aí, passe para cá os seus documentos. O rapaz meteu a mão ao bolso e retirou um
papel muito amassado que veio junto com um som de pássaros. Olhámos os dois,
ele tinha na mão uma roca de bebé e parecia constrangido, desculpe senhor
guarda, é para a minha afilhada, a Aninhas; era para ser uma surpresa, não
queria que o pai a visse antes de tempo. – e estendia o queixo na minha
direcção. Entretanto, o Guarda apontava repetidamente a lanterna ao documento e à cara do meu colega
a cegá-lo de claridade em cada vez. A meio destas manobras, a roca escorregou
da mão do “padrinho” e enquanto rebolava no chão do carro escaparam-se uns trinados
que, por breves minutos, nos deram a ilusão de pássaros e penas e ninhos. Era
como se no meio de um pesadelo houvesse uma janela de ar puro. Convenço-me hoje
que, se não fosse a aflição por que passávamos, eu já a imaginar-me atrás das grades e sem natal, podia haver graça em recordar a
queda da roca. Porém, naquela hora não sabíamos que fazer e ficámos os dois
quedos e mudos, como se não existisse o brinquedo pelo chão. Entretanto,
o guarda já desviara o foco e apontava enfastiado aos embrulhos no banco de
trás. Depois, sem cerimónias, abriu a porta, deitou-lhes a manápula e pôs à vista
uma bonequinha de trapos sorrindo em lábios de ponto-pé-de-flor, pernas moles a
esbabarem do papel florido. Ao lado espreitava também a delicadeza das botinhas
azuis. Pequeninas, alinhadas uma com a outra. Voltei-me para trás e pareceu-me
tão ofensivo aquele desaforo de papel rasgado que quase deitei tudo a perder. Neste caso, a calma do meu companheiro ajudou
a digerir o desgosto de ver profanados os meus singelos segredos de Natal. Estar ao lado de quem se aguenta, faz toda a
diferença. Por fim, depois de investigar a mala do carro o guarda chegou-se de novo
ao vidro e passando-me os documentos de identificação disse zombeteiro, podem
seguir, mas vejam lá se apanham a roca ou chegam a casa com os pássaros todos
mortos. E partiu a juntar-se aos outros, rimando a polaina com o sinal. Seguimos
o conselho da autoridade e procurámos a roca que aterrou no banco traseiro. Daí
a uns momentos liguei motor e faróis e fizemo-nos de novo à estrada. Rolámos em silêncio a recompôr-nos do susto e
só quando ouvi um gemido é que entrevi o tamanho do esforço que o meu colega de
viagem tinha feito. Parecia envelhecido,
tão exausto se encontrava. O corpo sem postura escorregava-lhe pelo assento, estava
pálido de dar dó e temi que desmaiasse. Como a normalidade pode ser difícil,
pensei. Parei o carro de novo. Fui lá atrás, saquei de uma garrafa de água que
trazia sempre comigo e molhei-lhe o rosto, depois fi-lo beber um pouco e
esperei. Pensei que uma bebida forte teria sido melhor, mas não havia. Quando me pareceu com mais cor
e já pegávamos de novo a estrada, ouvi-o numa voz ainda insegura, a Aninhas e a
roca é que me salvaram. E eu admirado, mas como é que a roca lhe foi parar ao
bolso, tinha-a debaixo das prendas. E ele, pois foi, eu vi-a sob os embrulhos e
enquanto o guarda se aproximava meti a mão e guardei-a no bolso. Foi um pressentir de salvação.
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