sábado, 2 de janeiro de 2016

Conto de Natal

Rodei o manípulo do vidro e quando o polícia se debruçou apercebi-lhe a ordem no movimento seco dos lábios, senhor condutor, os documentos do veículo se faz favor. E a minha mão independente apressando-se a satisfazer o pedido. Ele confirmou os dados do automóvel girando-lhe à volta e atardou-se depois na carta de condução enquanto, sem uma palavra,  enviesava olhares para o meu companheiro. Enquanto isso eu sentia o suor a escorrer-me costas abaixo, mas o homem continuava plácidamente sentado a meu lado. O Guarda entregou-me os documentos do carro e ficou de carta na mão a olhar-nos, tenho ordens para verificar a identificação de toda a gente, você aí, passe para cá os seus documentos. O rapaz meteu a mão ao bolso e retirou um papel muito amassado que veio junto com um som de pássaros. Olhámos os dois, ele tinha na mão uma roca de bebé e parecia constrangido, desculpe senhor guarda, é para a minha afilhada, a Aninhas; era para ser uma surpresa, não queria que o pai a visse antes de tempo. – e estendia o queixo na minha direcção. Entretanto, o Guarda apontava repetidamente  a lanterna ao documento e à cara do meu colega a cegá-lo de claridade em cada vez. A meio destas manobras, a roca escorregou da mão do “padrinho” e enquanto rebolava no chão do carro escaparam-se uns trinados que, por breves minutos, nos deram a ilusão de pássaros e penas e ninhos. Era como se no meio de um pesadelo houvesse uma janela de ar puro. Convenço-me hoje que, se não fosse a aflição por que passávamos, eu já a imaginar-me atrás das grades e sem natal, podia haver graça em recordar a queda da roca. Porém, naquela hora não sabíamos que fazer e ficámos os dois quedos e mudos, como se não existisse o brinquedo pelo chão. Entretanto, o guarda já desviara o foco e apontava enfastiado aos embrulhos no banco de trás. Depois, sem cerimónias, abriu a porta, deitou-lhes a manápula e pôs à vista uma bonequinha de trapos sorrindo em lábios de ponto-pé-de-flor, pernas moles a esbabarem do papel florido. Ao lado espreitava também a delicadeza das botinhas azuis. Pequeninas, alinhadas uma com a outra. Voltei-me para trás e pareceu-me tão ofensivo aquele desaforo de papel rasgado que quase deitei tudo a perder.  Neste caso, a calma do meu companheiro ajudou a digerir o desgosto de ver profanados os meus singelos segredos de Natal.  Estar ao lado de quem se aguenta, faz toda a diferença. Por fim, depois de investigar a mala do carro o guarda chegou-se de novo ao vidro e passando-me os documentos de identificação disse zombeteiro, podem seguir, mas vejam lá se apanham a roca ou chegam a casa com os pássaros todos mortos. E partiu a juntar-se aos outros, rimando a polaina com o sinal. Seguimos o conselho da autoridade e procurámos a roca que aterrou no banco traseiro. Daí a uns momentos liguei motor e faróis e fizemo-nos de novo à estrada.  Rolámos em silêncio a recompôr-nos do susto e só quando ouvi um gemido é que entrevi o tamanho do esforço que o meu colega de viagem tinha feito.  Parecia envelhecido, tão exausto se encontrava. O corpo sem postura escorregava-lhe pelo assento, estava pálido de dar dó e temi que desmaiasse. Como a normalidade pode ser difícil, pensei. Parei o carro de novo. Fui lá atrás, saquei de uma garrafa de água que trazia sempre comigo e molhei-lhe o rosto, depois fi-lo beber um pouco e esperei. Pensei que uma bebida forte teria sido melhor,  mas não havia. Quando me pareceu com mais cor e já pegávamos de novo a estrada, ouvi-o numa voz ainda insegura, a Aninhas e a roca é que me salvaram. E eu admirado, mas como é que a roca lhe foi parar ao bolso, tinha-a debaixo das prendas. E ele, pois foi, eu vi-a sob os embrulhos e enquanto o guarda se aproximava meti a mão e guardei-a no bolso. Foi um pressentir de salvação. 

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