sábado, 23 de janeiro de 2016

CAM - O Círculo Delauney e Outras Coisas

Pergunto-me vezes sem conta quem sou. Não que esqueça os dados identitários, ainda não frequento esse autocarro. Mas o multifacetado de mim incomoda  a cada aparição. Nos momentos de transição,  sou a dona de casa que, fora do avental e das panelas,  se estranha no espelho, não se acreditando na imagem, sou aquela?! É que outra de mim irrompe sem peias, toda sensações e sentimentos, a chamar por quem não está como se estivera, dando costas à versão caseira. Baralhante. Verdadinha.
É assim que deambulo por museus, oriento os olhos para a paisagem, vejo filmes e leio alguns livros. Outra de mim. Mas a falta que me faz ser aquela. A outra. Ou talvez a mesma, a que surge a espaços. E cada vez é única e primeira. Porém, há um lado de não ser assim: reapareço-me idêntica na força de sentir, empurrando todos os aventais do mundo para um esconso qualquer que me deixa a latejar por olhos e ouvidos, a realidade um excesso e eu lá no meio, sem fala, sendo mais ela que eu (não entendo a razão do v não escrever neste portátil que até é novo, tal não tá a moenga, ham?! Quem é que sabe depois o que são aentais e outras palaras). Tenho plena consciência de que petrifico sectorizada, incapaz da totalidade no seu aparecer.  Enfim, problemas de antena curta.
No CAM, gosto particularmente do quadro de Pessoa, obra de Almada Negreiros. Pessoa não está um espanto no retrato. É o todo do quadro que transtorna e fortalece de alma. Portanto, detesto pagar um bilhete e ele fora do seu lugar. Detesto mesmo (já paguei só para ir olhá-lo). Mas “O círculo Delauney” tinha de incluir Amadeo e também o prefiro. E lá fui. Em manhã de chuva atreita a continuidades de molha-parvos. Verifiquei que Pessoa estava fora de órbita. Faltou-me. Um tiro no porta aviões. Para colmatar, espreitei a exposição sobre os trabalhos de pintura e escultura de Hein Semke, um alemão que gostava de Lisboa. Não me transtornaram como aquele Pessoa bicudo em chão de dominó e fundo vermelho a emoldurar-lhe o pessimismo. Pe-ssi-mis-mo, sim. É o que nos dizem os olhos do Poeta (talvez sejam os do homem) e os olhos não mentem. Portanto, um submarino ao fundo e mais o resto do porta aviões, está claro. Andei em frente e para os lados a experimentar os Delauneys que conhecera via Amadeo. E descobri o aparente Amadeo e a mulher, Lucie. Um par dos antigos. Completo e au point. Deduzo que a imaginação me enganou uma vez mais, Amadeo seria de boas famílias, parece rapaz de recursos (onde é que eu tinha a cabeça, sabia que vivera em França; se calha, pensei que era filho de emigrantes), um Banderas lusitano e sensual, com sotaque de Amarante, que a gripe espanhola levou de enfiada. Mas tudo isto faz parte do jogo de aparências, o que me interessa em Amadeo veio-lhe da arte, simbiose transfiguradora de  mãos e mente. Há no pintor um vigor pictórico quase anestesiante, que cola o olhar às obras. Podemos desconhecer as correntes que seguiu, não destrinçar onde predomina uma ou outra, atermo-nos apenas ao que entendemos sem detectar inovações, pedaços de guitarra, letras, colagens, elementos de folclore. Mas gostamos. Não temos fuga face à interpelação vivaz de Amadeo. Com algumas semelhanças de estilo, os Delauneys são outra coisa. Mais moderados, afirmam-se em predominância de linhas circulares e a cor não grita nos quadros, a  exigir, vê-me. Os Delauney propõem-se, Amadeo impõe-se. No traço, na cor, no imaginário.
Voltando sobre os passos, observei a vida lá fora. A janela panorâmica oferecia-nos uma mistura de verdes lustrosos e, logo à frente do vidro, pássaros pretos com bico de sol, almoçavam sôfregas  bagas vermelhas no arbusto que bordeja a galeria. Alucinei nos repentes vorazes do bico-pinça, a retalhar, despedaçar e deglutir. Bocadinhos de vermelho, sobras em ameaço de queda, engolidos num ápice, a um tique de pescoço. Sem querer, tinha deparado com a cantina da passarada. Imaginei aquelas pinças amarelas a arrancarem-me bocadinhos de braço para o almoço. Mas eles adivinharam a minha presença. Ou, o que é mais provável, o bando saciou. E uma revolução de leques pretos perdeu-se no arvoredo. Fim. Um tiro nos submarinos que faltavam.
Entenda-se, foi o meu fim com eles. Ainda assim,  embasbaquei na sua  perversão afiada e nada dócil, lembrando certa cabine telefónica de Hitchcock. Por que razão me confrangem as várias realidades de mim se até  os pássaros  participam de serem mutáveis, ora são; ora não são, por serem outra coisa que é na mesma. Mau Maria...
E depois sim, para afundar um barco de três à Fundação, e o resto da batalha naval que espere assim como assim sou perdedora a valer, preenchi um impresso a apontar o erro ortográfico num placard da exposição. Porque sim. E para ajudar os senhores da Gulbenkian que são pobrezinhos, não têm funcionários suficientes para supervisão da língua  portuguesa, e os curadores têm mais que fazer. 

Palermas! 

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