quarta-feira, 8 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Enquanto os braços te obedeceram, leste tudo que aparecia. Gastavas nos livros as tardes em que os outros rapazes davam largas ao corrupio de juventude e hormonas, em corridas de bicicleta e passeios de carroça, na procura de raparigas que mães peremptórias guardavam em aspereza de cardo. Depois, a progressiva imobilidade das tuas mãos deformadas mudou-nos, a mim e à Joana, em leitores. E tanta vez não nos ouvias – afirmavas não conseguir entender-nos, a força da dor uma intempérie que todo te arrastava. A dor e o seu império. Que nos esmagava, nos punha a rastejar de impotência, eu irado contra os desígnios de um deus ininteligível, maligno, encarniçado contra nós. Por ti, teria ficado de joelhos, humilhava-me perante quem fosse. Que inútil, eu. Inútil de mim, Antoninho, a prestar vassalagem à doença.
 Em teu tempo, foras o melhor aluno da classe, o nosso pai orgulhoso, é um ás para as contas, e a ler? Lê tão bem como o padre na missa. A professora, silhueta baixinha e nervosa, cinco réis de gente que vos apavorava de régua em punho, a observar-te, este miúdo tem qualquer coisa nas pernas, noto-lhe um andar estranho. Angélica, Angélica, tão geniosa como preditiva. Partiu de régua e mau génio no ano seguinte à tua quarta classe, Antoninho, não te viu crescer por entre o amassar e o levedar do pão, fazeres-te homem no meio de gente sabida que te apoquentava de dichotes e incentivados conselhos sobre as fêmeas enquanto tirava o pão do forno, a cara de pimento vermelho a escorrer, o brasido um inferno com dono. E a doença serena dentro de ti, à espera do momento, a enganar-te com a saúde fácil e à vista. Começaste namoro com a Joana e, ao invés de mim, fizeste a tropa. E a maleita lá dentro, feita toupeira, a minar. A professora desconheceu-te o padecer, não te viu os ossos a deformar e sair da pele, os padeiros numa aflição, a virarem o pescoço, dói só de olhar. E nenhum remédio. Os pobres nascem e morrem como as árvores: no seu lugar. Esgotam o cálice a desbordar que ninguém afasta. A miséria de ser pobre é garantia de sofrimento até que o coração ou algum órgão rebente por entre as orações e os terços das mulheres que não adiantam nem atrasam. E mais nos valera sermos árvore ceifada por trepidação de motosserra agreste.
Este filme será também meu. Ao contrário de tanta gente, sei o futuro que me pertence. Vê tu, meu encanto, espera-me um final isento de romantismo. Calcula de onde me vem a boa disposição que invejavas, não sei como consegues essa alegria toda. Mas é cedo, nós dois, amor, ainda nem começámos. Somos um ao outro incógnitos, Ignoto Mare, como na aventura das descobertas. Porque foste e ainda és a minha ilha perdida na bruma.

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