Enquanto
os braços te obedeceram, leste tudo que aparecia. Gastavas nos livros as
tardes em que os outros rapazes davam largas ao corrupio de juventude e hormonas, em
corridas de bicicleta e passeios de carroça, na procura de raparigas que mães
peremptórias guardavam em aspereza de cardo. Depois, a progressiva imobilidade das tuas mãos
deformadas mudou-nos, a mim e à Joana, em leitores. E tanta vez não nos ouvias
– afirmavas não conseguir entender-nos, a força da dor uma intempérie que todo te arrastava. A
dor e o seu império. Que nos esmagava, nos punha a rastejar de impotência, eu irado contra os
desígnios de um deus ininteligível, maligno, encarniçado contra nós. Por ti, teria ficado de joelhos,
humilhava-me perante quem fosse. Que inútil, eu. Inútil de mim, Antoninho, a prestar vassalagem à doença.
Em teu tempo, foras o melhor aluno da classe, o
nosso pai orgulhoso, é um ás para as contas, e a ler? Lê tão bem como o padre
na missa. A professora, silhueta baixinha e nervosa, cinco réis de gente que vos
apavorava de régua em punho, a observar-te, este miúdo tem qualquer coisa nas
pernas, noto-lhe um andar estranho. Angélica, Angélica, tão geniosa como
preditiva. Partiu de régua e mau génio no ano seguinte à tua quarta classe,
Antoninho, não te viu crescer por entre o amassar e o levedar do pão,
fazeres-te homem no meio de gente sabida que te apoquentava de dichotes e
incentivados conselhos sobre as fêmeas enquanto tirava o pão do forno, a cara de pimento vermelho a escorrer, o brasido um inferno com dono. E a doença serena dentro de ti, à espera do
momento, a enganar-te com a saúde fácil e à vista. Começaste namoro com a Joana
e, ao invés de mim, fizeste a tropa. E a maleita lá dentro, feita toupeira, a
minar. A professora desconheceu-te o padecer, não te viu os ossos a deformar e
sair da pele, os padeiros numa aflição, a virarem o pescoço, dói só de olhar. E
nenhum remédio. Os pobres nascem e morrem como as árvores: no seu lugar.
Esgotam o cálice a desbordar que ninguém afasta. A miséria de ser pobre é
garantia de sofrimento até que o coração ou algum órgão rebente por entre as
orações e os terços das mulheres que não adiantam nem atrasam. E mais nos valera
sermos árvore ceifada por trepidação de motosserra agreste.
Este
filme será também meu. Ao contrário de tanta gente, sei o futuro que me
pertence. Vê tu, meu encanto, espera-me um final isento de romantismo. Calcula de
onde me vem a boa disposição que invejavas, não sei como consegues essa alegria
toda. Mas é cedo, nós dois, amor, ainda nem começámos. Somos um ao outro
incógnitos, Ignoto Mare, como na aventura das descobertas. Porque foste e ainda
és a minha ilha perdida na bruma.
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