quarta-feira, 8 de abril de 2015

Mataram a Cotovia

Gostei de ler “Mataram a Cotovia”. É uma história bonita, boa de ler e, claramente, um livro bom. Desta vez o meu feeling foi certeiro e não me arrependo do volume que preteri em vez deste. É certo, fiquei a desconhecê-lo, mas sei que não podia agradar-me mais. Contada pela voz de uma criança, esta obra dá-nos o mundo e a ambiência de princípio do século XX, no tom meio encantado da infância. Com seus porquês e medos, suas recusas instintivas e adesões inatas, seus maravilhamentos pegados às pequenas coisas... e um ninho de confiança e carinho onde se pode crescer à vontade. Ali se sente muito amor. Curiosamente, o trio principal teria tudo para gerar problemas entre si. Mas sucede o contrário. A morte da mãe, que a narradora nem lembra, une o clã para a vida e para a morte, como se os filhos, mesmo que indistintamente, sejam uma extensão do pai e sintam quando periga (ainda que ele o esconda) ou os necessita. E, como em todas as histórias de infância, há uma casa misteriosa, com uma personagem única, que ninguém vê mas todos sabem que existe no seu interior. E, na medida do crescimento, há a evolução do medo infantil acerca dela, suspenso até ao inesperado final.
Devo dizer que uma noite de venturoso acaso vi o filme baseado neste livro e que em português terá um nome bastante diferente que nem sei qual seja. Apanhei-o já tinha começado e só fiquei a olhar porque a imagem que vi primeiro foi a de uma garota de cabeça para baixo, pendurada numa árvore pelos pés, com as saias à cabeça. Exactamente  como eu me pendurava na nossa figueira, a concorrer com os meus primos para ver quem aguentava mais tempo; quando nos largávamos – por vezes, sem tempo para içar as mãos e fazer uma aterragem disciplinada, não aguentávamos e caíamos redondos no chão -  estávamos vermelhos como um tomate porque, dizíamos cheios de orgulho palerma, o sangue nos subia à cabeça. Para maior identidade, a fulana que no filme saia de casa e repreendia a garota parecia tão zangada como a minha mãe de cada vez que me apanhava naquele despropósito (a Calpúrnia elevava mais a voz, nunca ouvi a minha mãe gritar). Portanto, simpatizei de imediato. E depois sentei-me porque o filme era contado e não tenho armas para resistir a quem me conte o que for. No cinema ou na vida. Serei um sultão de Xerazade no feminino, mas a verdade é que não sei lutar contra uma boa história. E foi assim que vi o filme até ao fim e gostei qb.
Porém, o livro é outra coisa. Sem a possibilidade de vê-las, as personagens tornam-se poderosas. Oh! Não pela qualidade do meu imaginário, não é isso. Mas porque quem escreve tem de emprestar densidade ao personagem, personificá-lo de tal modo que se torne em realidade o que é apenas letra e papel. E creio que a autora, que só escreveu esta obra e logo ganhou um pulitzer com ela, fez um pleno. Sente-se a gente naquela cidadezinha, num determinado bairro, a descobrir as idiossincrasias de cada morador. E creio que todos acabamos simpáticos com aquele pai exemplar e sem defeito que se note, mas apontado um pouco como louco pela maioria (é apenas assisado e honesto, um bom educador). E gostamos de Calpúrnia a empregada preta (sei, agora não se diz preto porque é supostamente racista, diz-se de cor) e o preconceito é ali tratado primorosamente. E receio bem que de forma realista. Aliás, o enredo do livro pára nele para mostrar o quanto abunda dentro de cada um de nós. Ou seja, há mesmo uma personagem má, vingativa, um “não presta” carregadinho de defeitos. 
Sendo contado por uma garota, o livro é de uma profundidade simples que não aligeira fundura por isso. Antes se torna mais tocante a forma como Scout (a garota) vai descobrindo as coisas e consegue que nós leitores entremos nelas. Porque é ela quem, naturalmente, resolve algumas das situações mais embaraçosas – e até de perigo – que surgem.
E depois há aquele amor que se respira: do pai pelos filhos e o inverso. E entre os dois irmãos que são corda e caldeiro. E dos três por Calpúrnia. E parece-me isto fundamental para os olhos e mente  que têm: vêem e agem diferente dos demais.

É evidente que poderia continuar a desdobrar o livro e suas personagens (falta muita gente). Mas nada é comparável a ler:). E não se pode estragar a surpresa que salta das páginas.

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