segunda-feira, 6 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Nos vidros, percebem-se os passos soturnos da chuva, dedos macios a escorrer lágrimas de peitoril. E quem atente, sentirá a raiz das casas a agarrar às fundações, resistindo ao abraço ventoso e sem segredo, esbulhado de delicadezas, que se apraz em perturbar o breu. Corre em rajadas aflitas, percorrido não se sabe por que tormenta vingativa e desvairada. Passa a esguedelhar árvores e atira por terra flores temporãs, iludidas por uma aberta de calor. Se fosse possível escutar o silêncio que vive por debaixo dos silvos do vento, trazíamos à conversa os olhos cegos dos animais, corpos encerrados em si, focinho com cauda, fechados para balanço. Os sábios animais! Deixam a natureza à vontade e retiram-se incomodados, a sofrê-la. Esperam que se gastem uns nos outros os maus momentos, o medo involuntário a estremecê-los de membros, órbitas aterradas alargando por dentro da pele. E ficam ali. Quietos. Transidos. Os animais não suam frio, uivam por vezes, na dor sem lágrimas que lhes pertence. Inconscientes de ela haver. Uivam a dor do mundo com seus olhos tristes que não sabem que são tristes. Dolorosos. Não viste, riso de fonte, mas também fui novelo quando partiste. Oh, bem sei, não partiste. Contudo, flor de ausência, também não ficaste – és e não és, como diria Heraclito, o obscuro filósofo -, que não te sei lugar ou morada. Esvaneceste. Escrevo-nos, repara. A ti e a mim. Para deixar a quem - perguntarias na tua lógica natural - se a ninguém importamos e a nossa história é banal. Mas foi um banal raro, reconhece. E o mundo é efémero, o  importante surgiu da banalidade; escrevê-la é o que posso, que outra coisa não sei. Quem sabe um afilhado, uma sobrinha-neta, alguém, se demore nestas páginas e, quando enfim o tempo dos outros nos limite, o mundo possa entender. A história não se diz nunca no presente. Podemos ser uma marca, um risco colorido na paisagem de carvão. Um arco-íris. Dizias, vou morrer gasosa e faço casa no arco-íris; passo um mês no azul, outro no anil e depois logo se vê. Quantas pontas soltas em “logo se vê”. Quem sabe, andas agora a entrançá-las…

            Perdoa, mas desde sempre me parece que andámos juntos na escola, te ensinei a rodar o arco com uma varinha fina de gancho na ponta, a mão sobre a tua a temperar-lhe o modo e a força. E ele bambo de início e depois a criar equilíbrio, rodando amparado pelo arame, enquanto tu, saias ao vento, corrias o contentamento de seres capaz. Cá de trás, eu a observar-te, calções de peitilho, mãos em passeio inconsciente nas alças de pano, orgulhosas de ti, duvidando se irias embicar o arco na esquina do monte ou te fugia o gancho e ele cambaleava bêbado de fraqueza até tombar em balanços de redondo contrafeito. Imagino que vezes sem conta joguei o pião, o aparei e o passei rodando da minha mão para a tua, tão pequenina, num aviso de apára, apára, estica bem, estica-a bem senão ele não se aguenta. E tu, toda concentração, a esticar os dedos até ao limite e depois a torceres-te de comichão e riso nas voltas cada vez mais lentas e rombas que o bico te experimentava na palma, até que o brinquedo te escorria dançando, entre o anelar e o indicador, e caía no chão quase sempre morrendo do salto. E o teu, oh, contristado. 

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