E
se a vida humana fosse expurgada da temporalidade? A resposta mais comum é que
nos assemelharíamos a deuses. Somos assim, pretenciosos de raiz. Não pensamos
que poderíamos ser couves lombardas, cães, gatos, animais selvagens e ferozes.
Ou seres inanimados, objectos que alguém manuseie de apetite ou movido por
necessidade e dever. Não. Talvez por aspiração congénita, limitamo-nos a
caminhos ascendentes: deuses, intemporalidade, poderes infinitos. Porém, para
subtrair a temporalidade, bastaria a falta de consciência. Kant continua tão
razoável como então: tudo nos existe na mente.
O
homem é na verdade um ser complexo e estranhamente irrazoável: temporal, vive
como se eterno. E muitos – muitíssimos e desde tempos imemoriais – assumem que a subtracção do tempo no pós morte
os muda em semideuses. O que, bem vistas as coisas, é mania de grandeza e sinal
de diferença. A admissão da dualidade platónica subentende que, sem o homem, a
realidade (de qualquer dos mundos) elide.
Por
vezes, o acaso faz tremer esta estrutura de sentido. Nos momentos em que se
confronta com a sua mesma temporalidade – a morte que sempre o acompanhou -, o
homem duvida desta arquitectura, misto de razão e imaginário, que o configura. Por
excesso de realidade, as situações-limite dissolvem o sentido. É este excesso que
avassala e absorve a construção de sentido, a aniquila. E não sei se morrer não
é apenas chocar com o muro e a vitória dele.
Vem
isto a propósito de um dia de catorze horas numa urgência. Catorze horas a ver
entrar sobretudo velhos, folhas murchas a desfalecer entre lençóis e soro, sem
voz, sem cor, sem outro movimento que um bater de pálpebras a ranger resignação,
as mãos em concha, ao abandono, ossos recurvados de doença e anos, garras inermes.
Dá vontade de ir buscá-las a esse movimento involutivo e preencher de carne os
espaços entre os ossos. Alisá-las. Fazê-las regressar ao tempo da utilidade.
Catorze horas guardadas por seguranças hercúleos e couraçados, eucalípticos. São
espécimes imunes à compaixão, dextros em proibições paulatinas, que separam
familiares de doentes como quem deita mão a peúgas sem préstimo e as atira ao
caixote, olhos sempre mais além, a saltar cuidados, preocupações, avisos de, é
diabético, o senhor doutor que lhe veja o dedo do pé; ou, ainda não comeu nada
hoje e já lá vão oito horas na maca, veja lá se precisa de alguma coisa. Quem,
na distracção do segurança, ouse espreitar o corredor das urgências, vê as
macas em proliferação promíscua, umas atrás das outras, contíguas. Em cada uma
há um caso grave, uma vida assustada de sofrimento e fascinada de morte. No
exterior, um ou dois familiares de coração na boca. Ali, anda-se a poder de fé
e espera-se que uma equipa de médicos competentes receba o doente. Passarão
sempre – no caso dos idosos com problemas – cerca de oito horas até chegar uma notícia
mais concreta e unívoca: fica ou parte, é mais ou menos grave; há ou não
necessidade de intervenção cirúrgica. Até lá, a informação é quase nula.
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