Mas
não foi assim. Cresci na aldeia, era o filho do padeiro e não te sabia. Vivemos
desconhecidos no mesmo lugar pequeno. Hoje, soa-me a sacrilégio que fôssemos
contíguos e não te tenha adivinhado. Desculpa esfarrapada, a doença. Porém, é
verdade que ela me restringia. Por vezes, tomava-me a juventude, morava-me na mente a
encolher-me o pensamento em lavagens de temperatura infernal. Os médicos em
sucessão, é gota. E depois a olharem-me sem palavras, antevendo a minha
ignorância. Na cabeça deles, eu ouvia “gota” e um nome apenas, um nome de doença ignota e quedavam-se a medir o como de me anunciarem o futuro. Desconhecendo que lhe sabia
o caminho e o sem nome do sofrimento, ignorantes de que a vida me dera de
bandeja a experiência de corpo inteiro e sem futuro, até ao fim. Até ao fim,
Antoninho, que nenhum hospital te chamou a si e só nós te assistimos a dor
lancinante. Até ao Fim é o nome de um livro de Vergílio Ferreira, um real
retrato da velhice que nos devora desde o berço e, com os anos, nos retira de
sermos nós e até de sermos pessoas, a perdermo-nos, a perdermo-nos. Mas tu não
envelheceste, a doença devorou-te o vigor e em poucos anos te escavacou a
juventude. O coração alerta de meu pai
em desalentada revolta, não basta levar-me um filho, agora ainda quer o outro.
E eu contigo na mente, amparado às muletas, homem feito. A muito custo
deslocavas o corpo até à padaria a conversar nocturnamente com os padeiros que socavam a massa, a
paciência no sorriso que te nascia nem sei onde, a voz num acaso trivial, as dores
não dormem. E os homens em exagero de atenção circunspecta, sem resposta que se ouvisse, vermelhos do esforço, enfarinhados e virados à bola de pão, a desenhar-lhes a cabeça num golpe seco de mão. Por volta das cinco, clareava o mundo adormentado, a massa levedada e o forno no ponto, um cheiro a pão quente a espalhar-se no ar e já tu no quarto, a lucidez extensa dos teus olhos a correr a brancura da cal em paredes que teriam desmoronado há muito se a agonia pesasse. Vigiavas a alvorada do leito para onde dois colegas te carregavam. À volta, o atrevimento de um reparo condoído,
olhos a lembrar a energia dos teus braços na massa, a pena que me dá
este rapaz, e abanavam a cabeça, olhos baixos, a ler não se sabe que desgraças
na poalha de farinha que desprendia do avental.
Pouco
tempo depois, já eu te carregava no colo, as muletas inúteis. Depositava-te
junto ao tender da massa, recostado na cadeira toda armada de almofadas, porque
os teus ossos recusavam movimento e não te sentavas. E os padeiros escondiam à
pressa a compaixão que lhes vinha ao rosto, a mandarem-na lá muito para trás,
arrumada àquele lugar onde se guardam as lágrimas que encalham e não desprendem. Dizias que o
cheiro da massa a levedar te fazia bem e, sempre de bom humor, sorrias aos
antigos companheiros. Dores sem destino. Corpo preso. E ainda chalaceavas. O teu
coração bom sem as insurreições do meu, todo fora de maldizer a doença que te
escolheu ou arremeter contra o Deus que nos ensinaram. Se batiam por um pão, o
nosso avaro pai sem coragem de te negar o que fosse, virando costas para não
ver as dádivas, leva-me à falência este filho. Namoraste sem casar, faltou-te a
picardia dos encontros escondidos, um amasso aqui e ali, o acender de um beijo
chamando a insatisfação do corpo. A Joana, que até ao fim se firmou a teu lado,
nos bailes sozinha, fazendo par com crianças, já não anda coitadinho. Tu a olhá-la num
misto de amor e renúncia, não sou teu namorado, sou teu doente. Ela calada, a
fazer-te a barba, a mudar-te a cama enquanto eu te pegava no colo. Não
voltei a vê-la depois que se refez de ti e casou fora da aldeia. Somos devedores da sua doçura persistente, mas acredito que lhe
proteges a vida.
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