terça-feira, 7 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Mas não foi assim. Cresci na aldeia, era o filho do padeiro e não te sabia. Vivemos desconhecidos no mesmo lugar pequeno. Hoje, soa-me a sacrilégio que fôssemos contíguos e não te tenha adivinhado. Desculpa esfarrapada, a doença. Porém, é verdade que ela me restringia. Por vezes, tomava-me a juventude, morava-me na mente a encolher-me o pensamento em lavagens de temperatura infernal. Os médicos em sucessão, é gota. E depois a olharem-me sem palavras, antevendo a minha ignorância. Na cabeça deles,  eu ouvia “gota” e um nome apenas, um nome de doença ignota e quedavam-se a medir o como de me anunciarem o futuro. Desconhecendo que lhe sabia o caminho e o sem nome do sofrimento, ignorantes de que a vida me dera de bandeja a experiência de corpo inteiro e sem futuro, até ao fim. Até ao fim, Antoninho, que nenhum hospital te chamou a si e só nós te assistimos a dor lancinante. Até ao Fim é o nome de um livro de Vergílio Ferreira, um real retrato da velhice que nos devora desde o berço e, com os anos, nos retira de sermos nós e até de sermos pessoas, a perdermo-nos, a perdermo-nos. Mas tu não envelheceste, a doença devorou-te o vigor e em poucos anos te escavacou a juventude. O coração  alerta de meu pai em desalentada revolta, não basta levar-me um filho, agora ainda quer o outro. E eu contigo na mente, amparado às muletas, homem feito. A muito custo deslocavas o corpo até à padaria a conversar nocturnamente com os padeiros que socavam a massa, a paciência no sorriso que te nascia nem sei onde, a voz num acaso trivial, as dores não dormem. E os homens em exagero de atenção circunspecta, sem resposta que se ouvisse,  vermelhos do esforço, enfarinhados e virados à bola de pão, a desenhar-lhes a cabeça num golpe seco de mão. Por volta das cinco, clareava o mundo adormentado, a massa levedada e o forno no ponto, um cheiro a pão quente a espalhar-se no ar e já tu   no quarto, a lucidez  extensa dos teus olhos a correr a brancura da cal em paredes que teriam desmoronado há muito se a agonia pesasse. Vigiavas a alvorada do leito para onde dois colegas te carregavam. À volta, o atrevimento de um reparo condoído, olhos a lembrar a energia dos teus braços na massa, a pena que me dá este rapaz, e abanavam a cabeça, olhos baixos, a ler não se sabe que desgraças na poalha de farinha que desprendia do avental.

Pouco tempo depois, já eu te carregava no colo, as muletas inúteis. Depositava-te junto ao tender da massa, recostado na cadeira toda armada de almofadas, porque os teus ossos recusavam movimento e não te sentavas. E os padeiros escondiam à pressa a compaixão que lhes vinha ao rosto, a mandarem-na lá muito para trás, arrumada àquele lugar onde se guardam as lágrimas que encalham e não desprendem. Dizias que o cheiro da massa a levedar te fazia bem e, sempre de bom humor, sorrias aos antigos companheiros. Dores sem destino. Corpo preso. E ainda chalaceavas. O teu coração bom sem as insurreições do meu, todo fora de maldizer a doença que te escolheu ou arremeter contra o Deus que nos ensinaram. Se batiam por um pão, o nosso avaro pai sem coragem de te negar o que fosse, virando costas para não ver as dádivas, leva-me à falência este filho. Namoraste sem casar, faltou-te a picardia dos encontros escondidos, um amasso aqui e ali, o acender de um beijo chamando a insatisfação do corpo. A Joana, que até ao fim se firmou a teu lado, nos bailes sozinha, fazendo par com crianças, já não anda coitadinho. Tu a olhá-la num misto de amor e renúncia, não sou teu namorado, sou teu doente. Ela calada, a fazer-te a barba, a mudar-te a cama enquanto eu te pegava no colo. Não voltei a vê-la depois que se refez de ti e casou fora da aldeia. Somos devedores da sua doçura persistente, mas acredito que lhe proteges a vida. 

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