Mas
os projectos que fazemos, por mais assisados, dependem da realidade. Que os transforma, esboroa ou dá concretude. Entrei no
terreiro a enterrar a timidez no fundo dos bolsos onde ninguém podia adivinhar o
frio dos meus dedos suados. Na tentativa de cumprir propósitos, parei a habituar os olhos e observar os pares que rodopiavam, aqui
e ali, um a esgueirar-se para a zona mais sombria. Sentadas em tábuas corridas
assentes em séries de dois tijolos empilhados que não raro desmoronavam entre gritinhos e rabos no chão, as matronas conversavam de olho
nas filhas, ou guardavam em distracção garotas vesgas e sem graça que nenhum
rapaz desafiava. De mãos no regaço e casaquinho pelas costas, as esquecidas
aguentavam-se à vergonha de não serem puxadas por ninguém, a tentarem olvidar o
desinteresse do sexo oposto que as derrotava a cada música, antevendo a chacota que as aguardava no dia seguinte. A Isaurinha a engolir o vexame quando o Roberto encaminhou na
sua direcção e ela já a sorrir e a levantar-se, mas ele sobranceiro, adiantando-se a desafiar a Madalena. E a mãe a dar de ombros e a compor-lhe a gola da
blusinha, pindérico, vais ver que fez por querer, o nojento; deixa lá filha, aquilo
é gente que não merece o que come.
Com
olhos habituados, revi o cenário em pormenor demorado, sem encontrar o objecto da minha
cobiça. No entanto, a presença da Felícia da loja, sentada e
sorridente, indiciava a proximidade da filha. Curioso, esperei nova música e resolvi
puxar o sorriso grato da Isaurinha que se levantou a desabotoar o casaquinho,
nos olhos da mãe um lampejo de gratidão. Isaurinha era uma mocetona peituda,
cabelo e olhos de azeviche inocente, meio poucochinha, que os pais teimavam em
casar e ninguém queria para nora. Era a mais nova de quatro irmãs e a única encalhada,
como a falta de siso da mãe apregoava. Desde a escola primária que era amigo da
Isaurinha, garota de poucas falas e sorriso permanente a quem sempre admirei a solícita
ajuda a caídos e indefesos. Que, no mais, limitava-se a uns riscos ininteligíveis
e pouco a escola lhe fez.
Ao
fim de umas voltas, ela olhou-me na permanência do seu meio sorriso e adiantou,
ela saiu com o filho do feitor. A Isaurinha que não sabia ler nem contar, lia- me,
como sempre, coração e vontade. Apertei com ternura a mão que enlaçava a minha
e olhei-a no fundo dos olhos. Mas a garota já tinha afivelado o seu sorriso de
muro e foi assim que dançámos até deixá-la de novo junto à mãe, recolhendo um sumido obrigada. E depois, já sentada, ficaram-lhe
só as mãos a mover-se a tacto, ocupadas com o abotoar do casaco. E era como se,
cumprido o papel, eu tivesse deixado de existir.
Dirigia-me para a noite circunspecta quando cruzei com a loirinha e o filho do feitor que entravam, ele gingão e ela
envaidecida da atenção. Olhei-a melhor a despedir-me, e sei que nos entendemos.
O orgulho tufava no seu vestidinho de festa. Bonita, sim. Álacre. Iludida. Mas
eu apenas sabia da minha desilusão. Não antevi que o filho do feitor estudava
na vila e em breve trocaria a aldeia pela cidade, antes me cruzei desprotegido com
um rival armado. A minha mocidade ferida e impreparada desconhecia que a vida e
os desejos de cada um são, por vezes, isso mesmo: os namoros também servem
escaladas sociais, por isso, as garotas da aldeia desarmam perante os filhos
dos feitores como eles face às filhas dos patrões. Porém, não é fácil ordenar
uma balança de pratos assim desiguais e a vida põe cobro à disparidade destes
encontros quase momentâneos, sem que exista uma megera proibitiva, um pai
tirano que deserda e expropria, ou sequer uma impossibilidade traçada por ser
humano retorcido. Desejei-lhe sorte e, misturado com o movimento geral, abandonei recinto e intenções mal o tocador
encetou nova modinha.
Quando saí, olhos
habituados à luz, mergulhei atarantado no breu e logo um braço estendido e uma mão a agarrar-me a manga do casaco. Parei sem te ver, a esforçar os olhos para dois vultos
difusos. E uma voz clara, a tua, o senhor é que e o filho do padeiro? Eu desinteressado
a assentir e tu de novo, a gente atrasou mas viemos de longe e precisamos do
pão para a semana. Devo ter parado interrogativo, porque acrescentaste, já fomos
lá a casa mas o seu pai diz que trouxe a chave da padaria na algibeira. Levei a mão involuntária ao bolso e senti a forma da chave sob o
tecido. E lá seguimos os três, eu a sentir-me miserável. Quando separei os pães e me disseram onde estava
aquartelado o rancho, resolvi-me a acompanhá-las. Duas mulheres sozinhas e
carregadas, no meio de um pinhal denso como o que tinham de atravessar, eram perigosas. Para elas mesmas. Para a carga que
na altura apetecia a muita gente. Que a miséria não subtrai uma migalha ao
vizinho que deixa a porta aberta, mas, surgindo a oportunidade de surripiar a
qualquer desconhecido um pão que mate fome a muita boca, não a perde. Os códigos de honra não são universais. Talvez nada o seja. Mas isto digo eu hoje sob a chuva forte que inunda as ruas a escorrer.
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