quinta-feira, 9 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

No princípio da nossa história – minha e tua, riso de fonte - trago debaixo de olho a loirinha da Felícia da loja que me desdenhou olho no olho, escarninha, que vou morrer como o mano e não vale a pena começar comigo. Verdade granítica que não me pesou. Sou jovem, a doença dá os primeiros passos e tenho fé no tempo e na medicina. Além disso, a densidade do presente não incentiva projecções. Hei-de dobrar aquela garota a meu jeito; e, se não aconteça, encontro outra. Neste momento, alijo preocupações e estou prestes a sair de casa. Penteio-me ao espelho, a palma da mão oleosa a rasar o cabelo e logo a brilhantina do meu pai fixa ondas que ajeito a pente, a mudá-lo da mão esquerda para a direita que no espelho vejo trocadas. Como será que os outros me vêem, fará diferença que eu observe o simétrico de mim?! Tento imaginar-me com tudo que está do lado direito posto no esquerdo, mas perco-me na reconstituição. Olho-me melhor, avalio que peso pode ter, por exemplo, a simetria do risco no cabelo - a risca que vejo à direita está na verdade à esquerda. Parece-me ainda ouvir-te lá atrás, deixa-te dessas coisas de esquerda e direita, estás à altura de qualquer garota; cuida mas é de não esquecer os passos de dança que te ensinei. Espalho o resto do brilho na parte de trás da cabeça e, a esculpir o penteado, encaminho a dedo lustroso alguns cabelos fugidios. Depois, miro a obra. Sorrio-me. Preparo este corpo prometido à morte para um baile de rua. Fiz isto tanta vez e também tu me olhavas, Antoninho. Isento de invejas, um sorriso embevecido bailando na doença e o estribilho, vai devagar com o andor, ainda és muito novo.

Como agora, lavava as mãos e vestia o casaco que partilhava contigo. Depois, dava-te um aceno de despedida porque na nossa família e na aldeia inteira os homens não se beijam nem se afagam, dão-se grandes palmadas nas costas, riem uns dos outros e de quem calha, pagam-se copos de vinho e, em situações de ausência comprida, se a saudade lhes estrangula o coração, encadeiam em abraços tão íntimos e demorados que podem até chorar lá dentro, cabeça baixa, que ninguém dá conta. Os abraços masculinos são assim, fortes e comoventes. Só um amor fundo ou uma grande dor pode levar dois homens a um abraço. E tu, a quem eu tanto abracei em todos os estilos que um abraço pode ter - eras doente e eu uma criança quase -, no canto do espelho, em tua pose de irmão mais velho, não te esqueças, antes de dormir vens à minha cama. Eu fingindo, e se dormes?, tu num trejeito, não sei já como se dorme. Vem. Conta-me como foi. Diz-me se a Joana esteve. E eu saía com a ideia de que íamos os dois e que dançavas e ouvias comigo. Mas depois, empurrado pela escassez de tempo livre e pela febre de juventude e princípio de tudo, esquecia-te. E só me existias quando te fazias lembrado, eu a entrar em bicos de pés e tu, psst, psst. Então sentava-me a teu lado e comentava os pares, as brigas de homens e rapazes, os mexericos, a Joana quase sempre sentada ou a dançar com crianças, as raparigas com quem bailara e como, o tocador e as modas que tocava, as conversas das velhas que gostavas que te reproduzisse na íntegra. E eu a fazer-te a vontade e a imitar a ti Silvina peixeira, toda escamuda, lenço na cabeça de abas viradas à minhota e a quem só faltava a canastra, repuxando ao peito o xaile preto cruzado, escamas alçadas aqui e ali, uma enfiada de alfinetes-de-ama que ninguém explicava porquê tantos, de olho nas filhas, o corno da minha Ermelinda anda outra beiz de dança cum aquele esgroubiado do Sebastion. Se les beijo os dois nobamente, bai a toque de caixa pra casa e num torna aos balhos. Raio de cachopa! E ajeitava o rabo na dureza do banco corrido, a destilar um cheirete a peixe recozido de suor que afastava vizinhanças. Em volta das saias compridas, uma data de gatos aos miados que enxotava a pontapé das velhas socas de madeira, a rosnar, bichos dum cabrão bão-se cozer; daqui a pâuco deix'um c'as tripas de foura. A ti Silvina era a tua preferida. Por ser do Minho e ter língua afiada. E porque vestia à mulher do Norte. Dizias rindo que nem pelo casamento com o Josué peixeiro tinha lavado os pés e que era um milagre que lhes tivessem nascido duas raparigas em  vez de duas sardas. Fiel à profissão, a mulher ia para todo o lugar como andava de porta em porta, suprimindo apenas os instrumentos da arte: canastra e corneta . 
Era assim, entre risos e imitações, que respondia as tuas perguntas. Passado um bocado de prosa, já tu me parecias contente e entrosado no ambiente, quem nos ouvisse julgaria termos estado os dois no baile. A maioria das vezes, não me deitava, arrumava o moxo das visitas na parede lateral da tua cama, vestia a farda e, seguia para a padaria a dar o nó no avental - bastava atravessar o teu quarto e abrir a porta de comunicação -, a voz do pai atrás de mim, tal não é esta falta de juízo ham?! Antes de sair, virava-me para trás, dedo no trinco, o quico na outra mão, e o teu sorriso grato a perseguir-me a figura era de longe preferível ao repouso que faltava. 

Sem comentários:

Enviar um comentário