quarta-feira, 15 de abril de 2015

As Violentas Mãos da Vida

Mas no ângulo do espelho já não há nada e o teu canto é só um canto. Num ritual de purificação, o pai queimou-te o catre, a esconjurar sofrimentos incorruptíveis. E herdei a pouca roupa que tinhas. O dinheiro é escasso e tanta vez não chega para a compra do trigo, semanas existem em que vamos buscá-lo, diários. Em época de boas contas, uma vez por semana, a carroça abastece na moagem da vila mais próxima.  Mas, se os clientes não podem honrar os compromissos, a farinha é comprada a conta-gotas, o tempo de carroça extorquido às horas de sono. Nesta era de apertos e pobreza miserável, quase ninguém conhece desafogo. Por aqui, abonado, só o feitor, proprietário cioso da única  charrete da aldeia. E de certeza o doutor da Herdade do Lameirão que passa por nós no seu carro comprido com chofer e os homens a arredarem para a berma, a meterem-se nas valetas e a descobrirem-se, chapéu na mão, bom dia, senhor doutor. E ele passa recostado em finuras de conforto, a olhar em frente, um aceno de cabeça imperceptível para quem está. Nem sabemos se pertence mais à aldeia se a Lisboa, terra que imaginamos bonita e onde se demora que tempos, decerto na casa que por lá tem. Há quem diga à boca pequena que o doutor manda na pide e sai muita vez da aldeia para um almoço com Salazar. Mas ninguém sabe se isto é verdade ou não passa de um bate boca.
Espreito a noite lá fora e assalta-me a vontade de desistir de danças e ir passear no escuro. Na aldeia, a noite usa o véu pesado das viúvas, não se vê um palmo à frente do nariz. Lua nova, sem electricidade. Encolho os ombros e miro-me de novo no espelho. O meu pai balbucia com olhos de satisfação, se a tua mãe te visse... Não respondo. A minha mãe! Falaram-me dela. Como se o coração guarde lugar a palavras vazias de figura! Mas qual é a criança que entende a mãe de que não tem memória e que tomou remédio dos ratos para desistir. Que a entregou a colo de avó e pai austero, ignorantes do irrestrito da ternura, ele sem hábito de cuidar filhos em curta idade. A sua figura não me é importante.  A avó ainda ecoa, alongando olhos ao passado, o teu pai só te deu colo aos três anos. 
Olho-o sem rancor, admiro o seu modo comedido. Enterrar mulher e filho é obra. Acredito quando ele, “ela matou-se porque estava doente da cabeça”, sem acrescentos. Terá razão o meu pai,  alijar a culpa enfraquece o desgosto, torna-o perecível.  Dou-lhe uma palmada no ombro, um até logo rápido e vou no encalço do padeiro mais novo, meu colega de folia. E ele fica sozinho. Imagino que feliz por mim. Agora, no meio dos uivos de vento, só hoje, pai, me acudiu a ideia de que a solidão também te moía. Te moeu anos a fio e tu sem uma palavra, uma interjeição sequer. Como o filósofo, pensavas noutra coisa. 

Sigo rua abaixo a assobiar o sinal combinado, não quero enfrentar a penúria desconjuntada da casa de duas divisões, a miséria familiar envergonha-nos a todos. Mal a porta entreabre, surge escancarada no rosto faminto de velhos e novos; nos andrajos rotos, atolados em remendos a cair das linhas; na sujidade artesanal da mesa de tábua escurecida de nódoas onde nem uma cadeira pontua, os cacos sujos das refeições com restos entornados a esmo. Faz-me mal a curiosidade ranhosa e encardida de crianças que não viram pente, acocoradas pelo chão de terra. Olha-se em volta e a miséria galgou, das vigas abauladas de anos às paredes nuas e a descaliçar, rachadas de veios escuros, tudo pede esmola. Por via da situação e sem altura que permita arrefecer o ar, o verão  aquece a casa como um forno, e pelo rigor do  inverno o vento traça caminhos a encanar nos buracos das telhas velhas, uma ou outra partida e com goteiras que um balde apara, incerto. O meu amigo padeiro prefere as noites insones e trabalhosas na padaria, à frieza ou calor esburacados do sono caseiro a padecer de poucas tarimbas para muita gente.  
Chego à porta e nem sinal dele. Estendo uma mão contrariada, mas o correr de um ferrolho antecipa-se e logo o rosto enche o postigo pequeno, não posso ir, tenho anginas. E muito rápido, num mexer de lábios quase inaudível, não tenho sapatos, o meu irmão foi namorar e calçou-os. Assinto mudamente, desejo as melhoras em voz alta e desando dali acompanhado pelo fechar do postigo, um dedo  de desalento no ferrolho envergonhado. Olho os meus sapatos, só tenho este par que herdei de ti, Antoninho.  Na aldeia, por fogo, há  um par de sapatos de que os irmãos negoceiam vez, e esta verdade comum é tão incómoda que vive escondida de uns e outros. Mas já distingo o acordéon do Manuel Praça a embalar preocupações numa modinha conhecida. Sigo ao encontro da música a firmar-me na decisão, hoje tiro a loirinha para dançar. Pago a entrada ao João tractorista, aproveito a boleia e entro com dois ou três rapazes que vieram dos foros e ajeitam cabelos esbaforidos depois da viagem de bicicleta.

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