terça-feira, 14 de abril de 2015

Cama de Lodo

Fui ver-te de novo. De novo, não me parece fiel. Porque não há nada novo na situação ou em ti, antes é como se eu nunca tenha partido. Como se mergulhe de cabeça num mundo povoado por olhos abstractos, encostados à parede, a pares, em toda a volta da sala. Os teus olhos ao lado da televisão, também em abstracção errante. Reparo que cortaste o cabelo e perdeste aquele meio ar de seres tu, que te morava no rabo de cavalo. Que nos olhos não és tu nunca. Não moras nos teus olhos. Para onde terás ido, santo Deus?! Conto-te bagatelas de quando éramos crianças e nem repetes o meu fim de frase. Estás pálida, a blusa descai-te num ombro, tenho vontade de a ajeitar. Crio a convicção de que continuarias imutável se estiveras nua, planas no limbo. Mostro-te o embrulhinho do baton e num gesto que foste buscar ao passado abres a caixa, retiras a tampa dourada e rodas o invólucro até surgir a aguçar o vermelho escuro nacarado, “ ó D. Antónia, agora vou-me pintar”, dizes meia incrédula. A D. Antónia deve preferir o anonimato, não responde. Ou, quem sabe, nem existe. Pergunto se gostas da cor. E tu, um monossílabo de assentimento, já a fechar a caixa e a colocar o baton entre a roupa interior de que, desta vez, gostaste. E arrumas o assunto. Escolhi-to em cuidados dobrados de desábito, um vermelho a condizer-te no rosto. Mas os teus olhos abstractos na mesma.

Na visita seguinte, cheguei com o relógio que te prometera e finalmente encontrei. E animaste um pouco a olhar a bracelete de tamanho único, aguçando pormenores, é um relógio de ouro. Desisti de desconvencer-te quando teimaste em ouro branco. Mal o ataste no pulso lembrou-se-te o almoço e encaminhaste feita formiguinha para a sala de refeições onde a empregada contou que quase não comes. Olho-te as costas, dou uma corridinha e acompanho-te à sala, tu a apresentares-me, é a minha prima. E depois, como é hábito, esqueces-me. Saio a saber-me completa inútil. Espreito-te de rosto encostado na janela e nem debicas a comida. Estás serena no teu lugar, esquecida de mim e de tudo, o passado não te existe ou é muito nebuloso. Pergunto-me se serás assim ou a medicação te faz a cabeça. Quando inquiri se tens saudades do exterior, a cabeça um não rotundo e proferiste, “agora esta é a minha casa”. Disseste a frase agarrada a ela, com o abandono de criança que reconhece o lugar de pertença e não imagina que possa ser diverso. 

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