Antigas
casas senhoriais, um resquício de majestade na altura de portas e janelas
bordejadas a granito, pé direito monumental e arruamentos infestados de erva daninha, acicatam-me a
curiosidade. Sinto esse chamado na Casa Meal onde nunca estive enquanto de
portas abertas. Subo-lhe as ruas desertas. Paro no que foi jardim, bancos em
semi círculo guardados por pinheiros que a velhice não bafejou. Sento-me
intrusa na ponta da clareira e em
inesperada devassa íntima. Na minha frente, uma parede de arbustos que
enredaram, descontrolados de mão que os
encaminhe. Aspiro este indómito vegetal, promiscuidade de seiva que inflama
para ninguém. Foi seguramente um jardim de mulheres, pensado em socalcos como
as vinhas do Douro, cada um bordado a seu ponto. E, lá no cimo, a ruína da casa
a que se chega por caminho de madressilva perfumada que toda se derrama no muro,
a alegria de alguém por perto a despontar nos salpicos brancos de flor, bom dia. Era de tarde, mas não contrariei. No
sombreado daquele muro é, por certo, sempre manhã. A madressilva resistente.
Falta-lhe poda, adubo, padece da ferrugem negra que lhe invade a finura das
hastes, moléstia que pode mesmo ser manto de saudade. Mas floresce e perfuma. E
no ar que quase ninguém respira – eu sou alguém –, neste Outono que desmerece,
fica aquele odor a primavera húmida, uma certa promessa de vida a rebentar, que
a casa já perdeu.
O
edifício está ainda de pé, agora tapado de portas e janelas. Não entro, não
espreito. Sei-lhe o grande salão vazio, o friso de madeira que a rodeia em toda
a volta, o chão antigo em lavor de pedra desenhada, a lareira espaçosa onde mil
árvores morreram de vontade, a consumir-se pelo fogo, imoladas em fulva
alegria. Penso no brasido calmo, quando
o borralho apetece na sala aquecida. A essa hora de hóspedes nos quartos, as
senhoras, sentadas em bancos baixos, a roda das saias a desmaiar no chão,
chegavam à frente os seus insolúveis. Caladas. Mudas. Velhas. Tristes de tanta
luta atraiçoada sem travão. Não sei quem foram. Ou se existiram. Para mim, estão
sempre lá. Nas altas horas da noite, contemplando as melancólicas cinzas da
vida; ou talvez a traição do fruto do seu ventre.
A Casa Meal sofreu o mal de ser ruína
extemporânea, foi morrendo por dentro, devagar e à vista de todos. Involuía em
cada verão, cada vez mais silenciosa e desleixada. Até não abrir mais. E as
senhoras, se as houve, num lar qualquer, uma casa de repouso incógnita, “no meu
tempo”, “na nossa casa”, “as festas na casa”. E ninguém para ouvi-las. Ou
talvez alguém que desconhece a casa, ou que apenas a viu sem lhe assentar a
memória. Que pensa, já a velhota está com a mesma cantilena.
Na
entrada principal, o plátano centenário que a guarda já vestiu farda de época e
o chão está pejado de folhas mortas que resmalham ao sopro do vento, quais pés
que se arrastam em valsa sem arte. Sento-me no banco de granito e observo a rua
arborizada que desemboca no largo da porta principal, ramos em grinalda para nada. Tão inerte e solitária
como sempre a vi. Quanta vida se perde e esquece para sempre.
Desço
devagar, aspirando a madressilva. Paro. Colho alguns ramos finos. Dentro de um
copo com água, o seu estar de flor refresca-me os olhos.
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