quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Casa Meal

Antigas casas senhoriais, um resquício de majestade na altura de portas e janelas bordejadas a granito, pé direito monumental e arruamentos  infestados de erva daninha, acicatam-me a curiosidade. Sinto esse chamado na Casa Meal onde nunca estive enquanto de portas abertas. Subo-lhe as ruas desertas. Paro no que foi jardim, bancos em semi círculo guardados por pinheiros que a velhice não bafejou. Sento-me intrusa na ponta da clareira e  em inesperada devassa íntima. Na minha frente, uma parede de arbustos que enredaram, descontrolados  de mão que os encaminhe. Aspiro este indómito vegetal, promiscuidade de seiva que inflama para ninguém. Foi seguramente um jardim de mulheres, pensado em socalcos como as vinhas do Douro, cada um bordado a seu ponto. E, lá no cimo, a ruína da casa a que se chega por caminho de madressilva perfumada que toda se derrama no muro, a alegria de alguém por perto a despontar nos salpicos brancos de flor,  bom dia.  Era de tarde, mas não contrariei. No sombreado daquele muro é, por certo, sempre manhã. A madressilva resistente. Falta-lhe poda, adubo, padece da ferrugem negra que lhe invade a finura das hastes, moléstia que pode mesmo ser manto de saudade. Mas floresce e perfuma. E no ar que quase ninguém respira – eu sou alguém –, neste Outono que desmerece, fica aquele odor a primavera húmida, uma certa promessa de vida a rebentar, que a casa já perdeu.
O edifício está ainda de pé, agora tapado de portas e janelas. Não entro, não espreito. Sei-lhe o grande salão vazio, o friso de madeira que a rodeia em toda a volta, o chão antigo em lavor de pedra desenhada, a lareira espaçosa onde mil árvores morreram de vontade, a consumir-se pelo fogo, imoladas em fulva alegria.  Penso no brasido calmo, quando o borralho apetece na sala aquecida. A essa hora de hóspedes nos quartos, as senhoras, sentadas em bancos baixos, a roda das saias a desmaiar no chão, chegavam à frente os seus insolúveis. Caladas. Mudas. Velhas. Tristes de tanta luta atraiçoada sem travão. Não sei quem foram. Ou se existiram. Para mim, estão sempre lá. Nas altas horas da noite, contemplando as melancólicas cinzas da vida; ou talvez a traição do fruto do seu ventre.
 A Casa Meal sofreu o mal de ser ruína extemporânea, foi morrendo por dentro, devagar e à vista de todos. Involuía em cada verão, cada vez mais silenciosa e desleixada. Até não abrir mais. E as senhoras, se as houve, num lar qualquer, uma casa de repouso incógnita, “no meu tempo”, “na nossa casa”, “as festas na casa”. E ninguém para ouvi-las. Ou talvez alguém que desconhece a casa, ou que apenas a viu sem lhe assentar a memória. Que pensa, já a velhota está  com a mesma cantilena.
Na entrada principal, o plátano centenário que a guarda já vestiu farda de época e o chão está pejado de folhas mortas que resmalham ao sopro do vento, quais pés que se arrastam em valsa sem arte. Sento-me no banco de granito e observo a rua arborizada que desemboca no largo da porta principal, ramos em grinalda para nada. Tão inerte e solitária como sempre a vi. Quanta vida se perde e esquece para sempre.

Desço devagar, aspirando a madressilva. Paro. Colho alguns ramos finos. Dentro de um copo com água, o seu estar de flor refresca-me os olhos.

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