A
miséria é um facto que me tolhe, mar
encapelado submergindo a vontade. Voltou
a assolar-me em Ladrões de bicicletas.
De Sica no seu melhor. Um filme curto e todo do seu tempo, de quando a pobreza
era tsunami que levava de vencida toda a luta. De Sica materializa o ditado “A
ocasião faz o ladrão”. E fá-lo tal qual como era então a vida: a sobrepôr
misérias, esgravatando no meio de pobrezas hiantes e colossais, madrugadas
escuras de ruas repletas de bicicletas roubadas, à venda por partes e peças. Ou
inteiras. A usura desvairada dos pobres a explorar o semelhante, a comer-lhe
bocados de dignidade, como se o barco em que seguem não seja o mesmo. E o
protagonista que conseguiu um emprego depois de dois anos à míngua, que empenhou a roupa de
cama para retomar a bicla que a fome pusera no prego e o novo emprego exigia. E
que a deixa roubar logo no primeiro dia. Azar. Má sorte. A desdita da tentativa
de roubo mal sucedida e que acompanhamos a torcer por ele, sem pensarmos que
faz a outro o que lhe fizeram e ainda nos dói. A vergonha que o invade pelo
filho. E a criança que não despega. Que, qual carraça, o acompanha momento a
momento. Que, numa alegria orgulhosa, volta
a arear a bicicleta depois de desempenhada. Que, após o roubo, está a seu lado, procurando madrugada fora, debaixo
de chuva, num mar de bicicletas e peças soltas, olhos de raio x. Que segue o
pai na sua razão sempre gorada para recuperá-la. Que come com ele a última
ceia. Que, na mão que lhe estende final, mostra bem onde chega o entendimento
dos dois. O certo é que não se atinge a profundidade sem sofrimento partilhado.
O resto é conversa. E eles têm-se um ao outro até aos escaninhos da alma. Mas,
e apesar do amor unido que os sustenta e perpassa na família, que triste é
saber as nódoas negras da vida da gente. Que triste.
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