Naqueles segundos breves em que virou a cabeça, me apercebeu e se
levantou, duas visões fugazes se interpenetraram. Na minha frente
estava uma criança desgrenhada, tiritando em sujidade de corpo e roupa: braços,
pernas, pés e combinação enodoavam no embaciado do ar. Mas logo adesivou a
minha amiga transida de medo, mais pequena e mais sozinha que eu, despida de
rispidez e troça, um caracolito acocorado em moxo baixo, abismado na falta da
concha. Abraçou-me com olhos marejados, náufrago que, enfim, encontra bóia.
Aquele aperto lacrimoso e dócil foi tão inesperado que me tolheu a respiração.
Lídia era afoita, segura, de resposta pronta. Por isso, o desacerto improvável
que lhe irrompeu algumas vezes, qual ímpeto de sol que atravessa densa
nebulosa, encontrou-me sempre desprevenida. Por certo, não fui a amiga que
necessitava. Espanejada no meu egoísmo, não vi que Lídia era eu com outra face,
tinha os mesmos medos, a mesma tristeza e igual alegria. Que a esperança era em
nós duas uma planta a crescer. Quanto tempo precisamos para entender que os
outros são um eu outro! Talvez nunca sejamos capazes dessa plenitude
comparativa que preserva a diferença. Eu plantara-me na diferença mais fácil, a
egocêntrica – a minha, em relação ao resto do mundo humano –. E, naquela madrugada
de desgraça, sentada junto de Lídia a um calor físico que minguava em
raquitismo de labaredas, compreendi que, sendo diferentes, os homens
se assemelham. Anos mais tarde, chegaria a pensar que talvez “Amar os outros
como a nós mesmos” indique apenas isso: amá-los pondo no acto os ingredientes
que desejaríamos para sermos amados. Esta ideia aplacava
a interpretação vulgar de “amá-los com a mesma força e intensidade
com que cada um se ama a si mesmo”, cuja é impossível aos homens. Assentei este
raciocínio no princípio, Deus é bondade e amor; portanto, não pede impossíveis
aos homens. Ou, quem sabe, seja eu ainda a tentar humanizar o mandamento. A
facilitar.
Quando minha mãe veio chamar-me, já tínhamos acertado a promessa, onde quer
que estivéssemos, se uma chamava, a outra acorria. Saí de casa era dia claro.
No exterior, a evidência: as poupanças dos pais, da irmã e do cunhado de Lídia estavam reduzidas a um monumental monte de escombros. O Leão, hirto e em choque, virado ao
montão de entulho, a mão a rodar um boné maquinal, ia repetindo a espaços
esgazeados, isto nunca me tinha acontecido, que desgraça. As duas mulheres
deitavam-lhe olhos de ruindade e carpiam, haja Deus que foi de noite, as
gaiatas levavam os dias a brincar ali às casinhas, ai a desgraça que era, e
benziam-se ao funesto deste quadro de morte. Na sua indiferença de mundo, o
bebé mamava em descanso, uma mão pousada no peito da mãe como quem chegou ao
céu e parou. Nesse entretanto, os homens afogavam o
desgosto na taberna e acendiam ódios crepitantes ao Leão, de repente inimigo,
rabiscando sugestões em abordagens rancorosas, desgraçado! Agora levanta-a
outra vez e não lhe pagamos um tostão. E de olhos postos no
fundualho dos copos de tinto, matutavam descoroçoados, tanta casa que já fez e
logo a nossa é que havia de cair...Deus não quer nada com os pobres é o que é.
E assim se atardaram pelo balcão, a desgraça a irmaná-los, encha os dois, e a
morrer-lhes afogada em alcool que, no breu da noite seguinte, os havia de
estatelar nos pedregulhos da casa, vencidos de estranheza deslembrada, que é
isto?, as pedras condoídas, afadigadas a encolher esquinas perigosas,
guardando-os de pior mal, durmam que amanhã falamos. E eles um desgosto
obediente, mortos para o mundo, apagados até ao alvor do sol que apanhava as
mulheres descompostas a arrastá-los para a cama ainda meio inertes, todos
pendurados no frágil do corpo feminino, murmurando no seu
pescoço mmmm...mmmmm... pastosos e avinhados, enquanto os pés,
marionetas descomandadas, estorcegavam de biqueira, admirados da posição, já
não tenho planta do pé?!, as pernas deslembradas, em luta de obediência à voz
delas, homem de um corno que pesa como chumbo, dá uns passos ao
menos.
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