sexta-feira, 4 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

Naqueles segundos breves em que virou a cabeça, me apercebeu e se levantou,  duas visões fugazes se interpenetraram. Na minha frente estava uma criança desgrenhada, tiritando em sujidade de corpo e roupa: braços, pernas, pés e combinação enodoavam no embaciado do ar. Mas logo adesivou a minha amiga transida de medo, mais pequena e mais sozinha que eu, despida de rispidez e troça, um caracolito acocorado em moxo baixo, abismado na falta da concha. Abraçou-me com olhos marejados, náufrago que, enfim, encontra bóia. Aquele aperto lacrimoso e dócil foi tão inesperado que me tolheu a respiração. Lídia era afoita, segura, de resposta pronta. Por isso, o desacerto improvável que lhe irrompeu algumas vezes, qual ímpeto de sol que atravessa densa nebulosa, encontrou-me sempre desprevenida. Por certo, não fui a amiga que necessitava. Espanejada no meu egoísmo, não vi que Lídia era eu com outra face, tinha os mesmos medos, a mesma tristeza e igual alegria. Que a esperança era em nós duas uma planta a crescer. Quanto tempo precisamos para entender que os outros são um eu outro! Talvez nunca sejamos capazes dessa plenitude comparativa que preserva a diferença. Eu plantara-me na diferença mais fácil, a egocêntrica – a minha, em relação ao resto do mundo humano –. E, naquela madrugada de desgraça, sentada junto de Lídia a um calor físico que minguava em raquitismo de  labaredas, compreendi que, sendo diferentes, os homens se assemelham. Anos mais tarde, chegaria a pensar que talvez “Amar os outros como a nós mesmos” indique apenas isso: amá-los pondo no acto os ingredientes que desejaríamos para sermos amados. Esta ideia aplacava a  interpretação vulgar de “amá-los com a mesma força e intensidade com que cada um se ama a si mesmo”, cuja é impossível aos homens. Assentei este raciocínio no princípio, Deus é bondade e amor; portanto, não pede impossíveis aos homens. Ou, quem sabe, seja eu ainda a tentar humanizar o mandamento. A facilitar. 
Quando minha mãe veio chamar-me, já tínhamos acertado a promessa, onde quer que estivéssemos, se uma chamava, a outra acorria. Saí de casa era dia claro. No exterior, a evidência: as poupanças dos pais, da irmã e do cunhado de Lídia estavam reduzidas a um monumental monte de escombros. O Leão, hirto e em choque, virado ao montão de entulho, a mão a rodar um boné maquinal, ia repetindo a espaços esgazeados, isto nunca me tinha acontecido, que desgraça. As duas mulheres deitavam-lhe olhos de ruindade e carpiam, haja Deus que foi de noite, as gaiatas levavam os dias a brincar ali às casinhas, ai a desgraça que era, e benziam-se ao funesto deste quadro de morte. Na sua indiferença de mundo, o bebé mamava em descanso, uma mão pousada no peito da mãe como quem chegou ao céu e parou. Nesse entretanto, os  homens  afogavam o desgosto na taberna e acendiam ódios crepitantes ao Leão, de repente inimigo, rabiscando sugestões em abordagens rancorosas, desgraçado! Agora levanta-a outra vez e não lhe pagamos um tostão.  E de olhos postos no fundualho dos copos de tinto, matutavam descoroçoados, tanta casa que já fez e logo a nossa é que havia de cair...Deus não quer nada com os pobres é o que é. E assim se atardaram pelo balcão, a desgraça a irmaná-los, encha os dois, e a morrer-lhes afogada em alcool que, no breu da noite seguinte, os havia de estatelar nos pedregulhos da casa, vencidos de estranheza deslembrada, que é isto?, as pedras condoídas, afadigadas a encolher esquinas perigosas, guardando-os de pior mal, durmam que amanhã falamos. E eles um desgosto obediente, mortos para o mundo, apagados até ao alvor do sol que apanhava as mulheres descompostas a arrastá-los para a cama ainda meio inertes, todos pendurados no frágil do corpo feminino, murmurando no seu pescoço  mmmm...mmmmm... pastosos e avinhados, enquanto os pés, marionetas descomandadas, estorcegavam de biqueira, admirados da posição, já não tenho planta do pé?!, as pernas deslembradas, em luta de obediência à voz delas,  homem de um corno que pesa como chumbo, dá uns passos ao menos. 


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