quarta-feira, 9 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

A embasbacar na minha pessoa em cada esquina,  pouco olhei a Lisboa que acordava. Tinha passado deslumbrada no descomunal do Terreiro do Paço,  D. José altaneiro que enxerguei mal, os olhos a esquadrinhar, onde é que ele acaba, e minha mãe, não sejas tonta, isso é o cavalo, não vês o rei lá em cima, eu quase uma vénia a um sapato no estribo e a queixa impaciente,  não chego lá com os olhos. Minha mãe a puxar-me pela mão, desatendida de eu ser anã, e a meter por uma rua de montras com muito passo por andar, depois da pergunta medrosa a um senhor - de certeza um senhor, usava chapéu, estava barbeado e tinha gravata - cheio de pressas que lhe esticou um dedo e seguiu. Por via disso convenci-me que era mudo, mas minha mãe apenas, deixa-me em paz que tenho de ir com atenção, não me posso perder, continua a ver o penteado nas montras que é melhor. E só acordei do desacerto de vaidade contemplativa quando arreou a bagagem arfante ao rés de uma carreira desconhecida, a expiração do monstro uma peste nevoenta de gasóleo que se insinuava até à epiglote e nem sei mesmo se não chegava aos alvéolos de uma assentada, e ela a procurar nos bolsos, passa lá à minha frente que tenho de comprar os bilhetes. Eu reticente de pés, o dedo grande raso no chão, vou não vou, carreiras brancas e verdes a pespegarem-se-me na mente e o monstro branco, cinzento e encarnado a inquietar-me. Eu a desconfiar que me levasse para o estrangeiro em vez de Peniche, preocupada de não conhecermos lá ninguém e não termos casa e nem sabermos dizer coisa que se entendesse. Que, depois de comido o avio que deixava meu pai à míngua, agastado de nos esperar em vão, morríamos de fome e frio, tão certo como dois e dois serem quatro. A mão de minha mãe que já retomara o lugar no saco, a largá-lo, as palmas nas minhas costas sem cerimónia e a secura, entra e cala-te.
 E só quando rolávamos estrada fora, o olho de um, dois, três, nos sacos que amolgavam sob os nossos pés, cuidado não pises esse que tem o bolo, me elucidou que os autocarros mudavam de cor consoante a companhia a que pertenciam. Fiquei surpresa, o que são companhias, mas descaiu-me o arco da pergunta. O seu cansaço de olhos fechados alastrava pelo assento, alguns cabelos apeados dos ganchos desciam sobre o rosto em linhas escuras e fora de esquadria e, em vez de dedos diligentes a afastá-los, as mãos como mortas, deitadas de atravesso no regaço escuro do vestido  às cornucópias. Virei-me a receber as novidades que me vinham  da  janela. Fui encostando ao vidro devagar, sacudida pela dureza de travões e desníveis do caminho, o meu mundo em desfocagem rápida. Em alguns troços e curvas, o alcatrão esburacava e nascia uma profusão de pedras soltas sob as rodas saltitantes, o corpo aos saltos e balanços qual barquito agoniado em alto mar e eu a cair num vazio ocupado por uma floresta de pestanas, patas de mosca, inúmeras gigantes,  em entrelace sombreado.

Minha mãe acordou-me quando a camioneta virava uma esquina de casas baixas, barras em azul-claro. A meio da rua, uma caixa de correio igual à da mercearia numa parede branca, gente batida de sol em roupa escurecida sentava-se às portas a olhar a carreira sem interesse de maior. E eu incrédula, isto é que é Peniche?! É quase igual à nossa rua, só tem as barras de outra cor. E minha mãe a balançar no corredor, uma ida lá à frente como se mil mãos a empurrá-la para trás, esperas aqui. No regresso, a equilibrar-se em águas revoltas, por cima da ronqueira do carro, é na próxima paragem, ajuda-me a tirar os sacos. Puxou-os de sob os meus pés no ar e fez-me passar na sua frente para o corredor. O carro parou numa chiadeira de travões, embati desamparada na pega cromada do banco da frente e alguém me lançou a mão antes do chão. Ouvi o baque dos sacos, ploque, e senti as mãos de minha mãe, filha. Eu aterrorizada com o sangue que corria e o condutor lá da frente, saem ou não, tenho mais passageiros, não posso ficar aqui a vida toda de porta aberta. E quando passámos, minha mãe na sua voz baixa, obrigada. E ele alto, de nada, e baixinho a olhar-nos o conjunto, quase com pena de nós, coitaditas.

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