Poucas
vezes durmo até ser manhã. A maior parte das noites acordo com os teus pés
descalços a arrastarem pelo chão no meio do silêncio entrecortado por estalidos
de móveis, um cão a ladrar ao fundo da rua. E antes que chegues à porta do
quarto, o meu corpo automático já te alcançou. Ainda o sono não descolou da
mente e já os meus braços de mola disparada te seguram. Que a gente muda mais
que as estações. Ainda não descobri para onde me fugiu o sono pesado com que
brincavas, és uma pedra a dormir; que
nuvem extrema me roubou os sonhos em jeito de história; que buraco negro
extinguiu os contos fugazes e amenos que esquecia ao acordar e me faziam sorrir
dia aberto, se um pormenor os trazia à memória.
Tu divertida, conta lá o que sonhaste hoje. E, se me lembrava, eu a
escalar montanhas a pique, a alcançar castelos
escancarados como janelas de par em par; eu com botas de sete léguas em
episódios cheios de portas que nasciam não se sabe de quê, que antes não
estavam lá, e se abriam para aventuras inocentes. Olhavas-me meia decepcionada,
não sonhas comigo, nem te perdes de amores por ninguém?! Eu quase envergonhado
de te excluir e dos enredos de amor ausentes, não, nunca sonhei contigo ou com
alguém que conheça, nos meus sonhos eu sou outro qualquer num mundo de gente
que só neles existe. Demoravas-te pensativa, uma mão maquinal a acamar madeixas
atrás da orelha e que uma vez libertas
se quedavam em arco gracioso rente à bochecha. E eu gostava de te ver assim,
suspensa. Se inquiria, o que estás a fazer, quedavas-te indecisa, não sei, se
calhar pensava. As saudades que tenho de ti e dos teus pensamentos!
Hoje
durmo pouco e sempre contigo na mente. Quando os meus braços de mola te agarram
a meio do quarto, naquele instante breve em que és memória e o meu sono não te
deixa ainda ser inteiro presente, volto atrás. Desprendes o mesmo aconchego a
lençois e edredon, abandonas-te – parece-me que te abandonas – ao meu corpo no
jeito antigo. Demoro-me a sentir os teus cabelos sobre o externo. E tu murmuras,
Pai, e quebras o encanto. Levo-te à cama, desvio as cobertas, sento-te e encaminho-te
as pernas. Depois, aconchego-te as roupas, dou-te um beijo e repetes, Pai. Fico
a teu lado até que os olhos se te cerram de novo. Fecho a luz. Mudo de quarto.
Deito-me. As saudades que eu tenho de ti! E rememoro a tua forma de dormir
agora tão outra. A tua mãe para mim, não dormes na mesma cama? E eu, não tenho
coragem. E não tenho. Dou-te banho, passo-te a esponja com o gel perfumado que
preferias, lavo-te a cabeça com champô de maçã e revejo-te o rosto contente,
cabelo molhado debaixo do meu pescoço, cheira lá e dá-me uma dentada pequenina.
E eu, mãos à bolina no cabelo húmido, renasces em cada vez que sais da água. E
agora alheias, páras os olhos em qualquer fundo que desconheço e deixas-te
manobrar, confias. Seco-te em cuidados de toalha materna, com a ternura
desembrulhada de desejo, um carinho protector na felpa de algodão. Seco-te a
pobreza das pernas, do sexo, do ânus, e tu, ausente de ti. Sem o teu cheiro. A
tua pele mudou e já não mistura com o perfume. Cheiras ao frasco aberto em cima
da cómoda e que escondo para não partires ao pegar. Viraste menina a perder a
palavra, o tino e o mais. Deixaste de saber vestir-te, não comes sozinha, já
não consegues fugir de casa. Fizeste-te dócil ao babete e à sopa passada e o médico
antecipa seringas nas crises, diz que engolir é um acto reflexo, que, com sopa
líquida, a seringa resolve. Que, breve, te confinas à cama. Em tempos, se a
filha nos visitava, tu de olhar desinteressado, não conheço esta menina. E para
ela, quem é a menina? A filha dizia-te o nome que repetias em mero serviço
mecânico. Não a reconhecias.
Perdi
quem eras para um fundo de vidros partidos. Foste caindo. A
esfacelar. Quem sabe, melhor se também eu lá dentro. Contigo. Sem o algoz da consciência.
Soldadinho e bailarina.
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