Vou
por este Alentejo fora a pensar em ti. Impotente. Desejando que o meu pensamento alivie nem sei
o quê da tua dor. E a natureza impávida
e radiosa, as árvores da beira de estrada doirando o seu outono soalheiro pelas
curvas da planície. O nosso Alentejo como uma pintura, reverdecido e abandonado
à pontualidade cálida do sol. Pelas
colinas, alvas igrejas guardam o casario
em cacho. Sem atentar em ti. Sem te saber. Sem cuidar que a violência nunca é
doméstica. A violência é odiosa e quebra, esborracha sem dó, é bravia, não
escolhe sítio. Em contraponto, a planície despega-se de gotas nocturnas e, alheia
a dramas, entretém-se a arredondar suavidades
bucólicas pelos montes. Por entre verdes perenes espreitam copas amarelas, gotas
de mel a derramar na paisagem. Há um soalhento pacífico no ar da manhã. Mas para
ti não houve doçura, nada ontem te foi suave. Fustigaram-te marteladas raivosas,
a fúria do ferro contra a carne a buscar
o osso. A interromper-te a tranquilidade
dos nervos e dos sistemas, um estampido de medo e assombro no teu interior e que
ninguém ouviu, o teu corpo a descoberto, reunindo forças inócuas contra o
animal armado. Que é assim o lado mais torpe e louco do homem na vertigem
caudalosa do amor próprio ferido, corroído pela ferrugem do desvario.
Revejo-nos em grupo, passeando. Era o tempo em que ainda as mãos se confiavam
uma à outra, tu a desvaneceres no avião, fotografando nuvens enquanto eu me
perdia em companhias de vôo que não ocupam espaço e são sempre as minhas. E ia
jurar que não vocês e eu, mas eu e outra gente que vocês desconhecem e é com
quem viajo o tempo todo, mesmo se calha espreitar as nuvens da objectiva e
responder e perguntar.
E
tu, sempre triste. Tão de uma tristeza por dentro dos olhos que mesmo sorrindo
não despegava. Mas continuavas a passar
na minha porta de mão na mão. Admirava-te. Uma avó passeando de mão dada.
Achava o gesto tão bonito. E a mão na mão o que é senão isso, que uma mão pode
abandonar-se dentro de outra e os dois corações tão dispersos. Mas não foi isso
que pensei. Ou talvez eu não tenha querido pensar.
Passo
junto ao açude impenetrável, águas
escuras tão quietas como a tua tristeza calada e sem um remoinho. E eu junto de
quem privava contigo, a encapelar, o que se passa, de onde pode vir tanta
tristeza. E as gentes alisando o espelho da cisterna, é impressão, deixa-te de
ideias. E o açude para mim, palerma, não sentias que era verdade? O fascínio do
açude que me arrepia em mistério e fundura, a dar-me as costas numa indiferença fechada, tinhas
obrigação de saber. E tinha.
Mas
nada soube.
Por
vezes caminhavas sozinha e vinhas até mim num sorriso de conversa –
vieste quando foste avó, lembras-te? Mais tarde, trabalhámos juntas numa
formação que correu bem e tratava-te por um diminutivo terno que não te demovia
as depressões. O meu diminutivo nunca chegou onde devia, não avançou, ficou à
bordinha de ti, quedou-se no limiar. Como a minha intuição. Reagiu à tristeza
do olhar e acomodou-se de seguida.
Na
dobra de uma curva, surge Vale de Leite
que desde a adolescência me suscita o éden e onde nunca irei para não ter de
concluir que é apenas uma quintinha normal. Sorrio-lhe da estrada na comunhão
do segredo que nos une, certa de que só eu sei deste paraíso leitoso em
contracurva. Mas tu dolorosa. No hospital. A recuperar de um inferno com um monstro
a perseguir-te.
Contudo,
dormiu a teu lado e contigo muitos anos.
Amou-te. Quiseram-se bem. O que a vida nos faz!
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