Dias antes da viagem, minha mãe começou a arranjar roupas e mimos.
Cirandava a um lado e a outro e eu encantada no saco plástico dos rolos, a
mirá-los na transparência: uns cilindros baixinhos e iguais, cheios de picos a
toda a volta, em plástico colorido; cada um com dois furos frontais junto a uma
das bases a prender as duas pontas de um elástico com uma bolinha a meio que
encaixava na outro lado do cilindro.
Como carraça, deslocava-me no interior do silêncio de minha mãe. Perseguia-a
a esbarrar nas suas mãos, a colocar-me no caminho das pernas sacolejando o
saco, como é que isto se põe. Farta de mim, a mãe desatou o nó, tirou um rolo e
demonstrou, é assim. E ficou olhando a minha mão que palpava o volume de
cabelo enrolado, não sei como é que vais dormir com isso. Eu de jacto, não dói
nada, nem sinto os picos. E no entanto um ouriço aninhado no meu pescoço e o
cabelo repelado a guinchar, que aperto,
tira-me daqui. E tirei. Mais repelões, eu a garantir de viva voz, não dói nada,
isto.
Admirava-me a falta de alegria de minha mãe.
Saíamos a passeio, de visita a meu pai, numa terra que não conhecíamos. Quando
lho reparei contrapôs séria, são coisas de pessoa crescida filha, não te
interessam. Na véspera, madrinha Carmelita apareceu na carreira, olhos piscos de cataratas,
pernas troncudas e pés inchados a palpar degraus, o peso do corpo à revessa da
bengala. Toda embrulhada em cuidados com os pasteis preferidos de meu pai,
ainda assim os tombos da carreira não os tivessem molestado. Em casa, minha mãe
com brilho de água nos olhos, a receber o embrulho e abraçá-la, que nem sei o
que fez primeiro, ó madrinha. E perderam-se atrás da porta do quarto num aviso,
vai brincar. Depois chegou minha avó expedita, toma lá e vai comprar um quarto de
açúcar para o chá. E quando cheguei ainda o concílio durava. Eu a ansiar pela
noite. A desejar o banho. A querer pôr os rolos na cabeça que com o cabelo
molhado é que era. Mas as horas a empastar, a escorrerem pingo a pingo.
Quando enfim o momento chegou, deixei que minha mãe fizesse o trabalho, a
virar a cabeça para onde indicava, numa obediência que ela bem entendia.
Apertava-me os ouriços e murmurava quase condoída, tu não vais conseguir
dormir, filha. E eu cénica, a ensaiar poses de almofada, durmo bem, vou dormir
assim, olhe mãe, olhe. Mas não dormi assim. Nem bem. Os ouriços magoavam-me
deveras, incomodavam-me as mechas ciliciadas, entaladas naquele matagal de picos, o pescoço pejado
de agulhas. Valeu-me a necessidade de sair de madrugada. Quando minha mãe tirou
os rolos, os cabelos anquilosavam neles, e penei sem um ai, minha mãe a ameaçar uma tesourada aos mais casmurros. Era noite, não
tinhamos espelho e na pressa de pentear constatou, olha, enrolou mas
não ficaram canudos. Foi pólvora: pus a mão e convenci-me, estava uma lindeza.
Vesti-me às pressas e guardei a demora das mãos a degustar o ondulado para o atalho a caminho da estação enquanto os pés resvalavam nas pedras, o dedo grande mirrado como caracol ao sentir-lhes os agudos, uma vozinha lá em baixo, não se vê nada.
Já na gare, vindo do breu, vimos aproximar um gigantesco olho de luz
branca, a trovejar por entre a fumarada.
Subimos os degraus da carruagem, eu içada pelo revisor e minha mãe a dar conta
dos pertences, um, dois, três. Na viagem de comboio, as minhas mãos não se coibiam
de subir até à surpresa da ondulação, convicta que eu só penteado. As mangas e
o casaco curto, fora de órbita; os sapatos cortados na frente e com o dedo grande
fora da sola, desimportantes; eu magríssima e com uma meia em baixo e outra em
cima, nulo. E de minha mãe não lembro
nada excepto o vestido fino e sem casaco e o cuidado com os sacos, um, dois, três.
Depois foi a viagem de barco e aquele aperto na entrada. Ela para mim, agarra
bem essa asa do saco senão perco-te. E o susto da minha mão unida à asa, vergões até doer. Sentadas na cave do barco, não vi do rio senão a água
suja e sem fundo que espumava para cá e para lá sob a ponte de entrada. E minha
mãe numa mirada inquieta, a saltar pernas e braços, um, dois, três.
Só a caminho do Rossio ousei olhar a minha imagem nos vidros das lojas
ainda fechadas. De tão enrolado que ficara, parecia que em vez de cabelo, tinha
um boné. Achei-me deveras especial e desejei que Lídia pudesse ver-me. À Luz cinzenta do amanhecer, minha
mãe saindo das suas preocupações logísticas, como tu estás, filha, enrolei
demais. E eu satisfeita, uma corridinha para ficar uns momentos a mirar-me num
vidro lá à frente.
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