sábado, 5 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

Dias antes da viagem, minha mãe começou a arranjar roupas e mimos. Cirandava a um lado e a outro e eu encantada no saco plástico dos rolos, a mirá-los na transparência: uns cilindros baixinhos e iguais, cheios de picos a toda a volta, em plástico colorido; cada um com dois furos frontais junto a uma das bases a prender as duas pontas de um elástico com uma bolinha a meio que encaixava na outro lado do cilindro.  Como carraça, deslocava-me no interior do silêncio de minha mãe. Perseguia-a a esbarrar nas suas mãos, a colocar-me no caminho das pernas sacolejando o saco, como é que isto se põe. Farta de mim, a mãe desatou o nó, tirou um rolo e demonstrou, é assim. E ficou olhando a minha mão que palpava o volume de cabelo enrolado, não sei como é que vais dormir com isso. Eu de jacto, não dói nada, nem sinto os picos. E no entanto um ouriço aninhado no meu pescoço e o cabelo repelado a guinchar, que  aperto, tira-me daqui. E tirei. Mais repelões, eu a garantir de viva voz, não dói nada, isto.
             Admirava-me a falta de alegria de minha mãe. Saíamos a passeio, de visita a meu pai, numa terra que não conhecíamos. Quando lho reparei contrapôs séria, são coisas de pessoa crescida filha, não te interessam. Na véspera, madrinha Carmelita apareceu na carreira, olhos piscos de cataratas, pernas troncudas e pés inchados a palpar degraus, o peso do corpo à revessa da bengala. Toda embrulhada em cuidados com os pasteis preferidos de meu pai, ainda assim os tombos da carreira não os tivessem molestado. Em casa, minha mãe com brilho de água nos olhos, a receber o embrulho e abraçá-la, que nem sei o que fez primeiro, ó madrinha. E perderam-se atrás da porta do quarto num aviso, vai brincar. Depois chegou minha avó expedita, toma lá e vai comprar um quarto de açúcar para o chá. E quando cheguei ainda o concílio durava. Eu a ansiar pela noite. A desejar o banho. A querer pôr os rolos na cabeça que com o cabelo molhado é que era. Mas as horas a empastar, a escorrerem pingo a pingo.
Quando enfim o momento chegou, deixei que minha mãe fizesse o trabalho, a virar a cabeça para onde indicava, numa obediência que ela bem entendia. Apertava-me os ouriços e murmurava quase condoída, tu não vais conseguir dormir, filha. E eu cénica, a ensaiar poses de almofada, durmo bem, vou dormir assim, olhe mãe, olhe. Mas não dormi assim. Nem bem. Os ouriços magoavam-me deveras, incomodavam-me as mechas ciliciadas, entaladas naquele matagal de picos, o pescoço pejado de agulhas. Valeu-me a necessidade de sair de madrugada. Quando minha mãe tirou os rolos, os cabelos anquilosavam neles, e penei sem um ai, minha mãe a ameaçar uma tesourada aos mais casmurros. Era noite, não tinhamos espelho e na pressa de pentear constatou, olha, enrolou mas não ficaram canudos. Foi pólvora: pus a mão e convenci-me, estava uma lindeza. Vesti-me às pressas e guardei a demora das mãos a degustar o ondulado para o atalho a caminho da estação enquanto os pés resvalavam nas pedras, o dedo grande mirrado como caracol ao sentir-lhes os agudos, uma vozinha lá em baixo, não se vê nada.
Já na gare, vindo do breu, vimos aproximar um gigantesco olho de luz branca, a trovejar  por entre a fumarada. Subimos os degraus da carruagem, eu içada pelo revisor e minha mãe a dar conta dos pertences, um, dois, três. Na viagem de comboio, as minhas mãos não se coibiam de subir até à surpresa da ondulação, convicta que eu só penteado. As mangas e o casaco curto, fora de órbita; os sapatos cortados na frente e com o dedo grande fora da sola, desimportantes; eu magríssima e com uma meia em baixo e outra em cima, nulo.  E de minha mãe não lembro nada excepto o vestido fino e sem casaco e o cuidado com os sacos, um, dois, três. Depois foi a viagem de barco e aquele aperto na entrada. Ela para mim, agarra bem essa asa do saco senão perco-te. E o susto da minha mão unida à asa, vergões até doer. Sentadas na cave do barco, não vi do rio senão a água suja e sem fundo que espumava para cá e para lá sob a ponte de entrada. E minha mãe numa mirada inquieta, a saltar pernas e braços, um, dois, três.

Só a caminho do Rossio ousei olhar a minha imagem nos vidros das lojas ainda fechadas. De tão enrolado que ficara, parecia que em vez de cabelo, tinha um boné. Achei-me deveras especial e desejei que Lídia pudesse  ver-me. À Luz cinzenta do amanhecer, minha mãe saindo das suas preocupações logísticas, como tu estás, filha, enrolei demais. E eu satisfeita, uma corridinha para ficar uns momentos a mirar-me num vidro lá à frente.

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