sexta-feira, 4 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

Nos dias seguintes, Lídia encarnou a heroína e viveu a escola no sucesso da desgraça. Cheia de si, misturava factos e  imaginação, agitava e dava a provar, fui a primeira a ouvir, eu estava acordadinha e houve um barrote que caiu primeiro e só depois é que veio aquele estrondo tamanhão que acordou toda a gente, a minha cama até saltou, morra aqui ceguinha se não é verdade. Depois, escrutinava o talego da escola e trazia lá do fundo pregos com cimento agarrado, bocados de madeira, fragmentos de azulejo irisado que despediam faísca à luz do sol e injectava invenção a encarecê-los, este prego até voou, estava de patas ao ar mesmo em frente à minha porta do quarto; isto é um bocado da viga do meio que era mais grossa que o eucalipto que está lá à curva e se esmigalhou toda, há falhas de madeira até à estrema da minha terra, olhem bem para o perigo deste bico, e fingia passar-lhe um dedo; e isto é um azulejo da casa de banho, é só um bocadinho, mas brilha muito quando lhe bate o sol. De palmas abertas, alargava as mãos  à mirada de todos. Depois fingia cuidado sôfrego a depor os pedaços na sacola e, longe da vista, a importância do tesouro fermentava. O negócio assomava logo que alguém pedia, dá-me só um prego. E ela, e tu, o que é que me dás para a troca? E foi acumulando bens. Tinha berlindes, pratinhas, vestidos para as bonecas, pedaços de bordado inglês, vidros de fundo de garrafa, as contas do trabalho de casa feitas com prova real e a dos noves fora nada, lanches gulosos de pão branco e mole com margarina a derreter, chocolatinhos com recheio.  Ao longo da semana, comerciou desde bocados de tijolo em forma de pistola a pedras nascidas para jogar à macaca e às cinco pedrinhas, passando por pedaços de azulejo florido que regateava duramente. E eu perdia valor enquanto o espólio crescia. Aprendi-lhe a indiferença certa se a mente assoberbava por qualquer assunto. Então, passava em nossa casa sem olhar, esquecia-me nos recreios e vivia rodeada de novas amigas. Eu, não lhe existia. Na certeza de que a minha amiga acabaria por voltar, comecei a interessar-me pela visita a meu pai, o tricot de minha mãe quase pronto, a curiosidade de Peniche a borbulhar dentro de mim. Finalmente ia conhecer uma terra que tinha mar, elemento a que  a minha mente  não conseguia dar forma precisa, mas me parecia apenas uma grande confusão dado que me diziam que o mar é muita água salgada junta e cheia de peixes variados.  Dava-me algum susto pensar em peixes-espada, sardinhas, cavalas, chicharros, carapaus, dentro da mesma água. E pouco me demorava a pensar na vida da prisão.
            Na loja, o merceeiro olhava-me indiferente e era como se o momento da entrega da carta não tivesse existido. Mas o avô de Lídia observava-me em azul céu e voz branda, minha vizinha pequena, e eu sentia que aqueles olhos de tanto ano não era só a mim que viam.
Quando Dezembro se apresentou, impei de contente. Minha mãe começou por cortar-me as tranças na D. Júlia, senhora de pele branca e lábios pintados de vermelho escurecido que me chamavam “minha queridinha” num mitete de arrulho, expressão que me dava um gozo imortal por julgar que viesse de gostar muito de mim, o que passados uns anos descobri não ser verdade. Saí da cabeleireira quase em em êxtase comigo, mas, ao invés do que supunha, fui a única pessoa satisfeita com a imagem. Minha mãe que amava as tranças passou-me a mão pela franja, agora tenho de me habituar. E mais não disse. As vizinhas limitaram-se a um olhar quase desagradado, ai, o cabelo dela é tão escorrido, também, pouco se pode fazer com aquilo...Mas eu olhava-me no espelho e exultava. Entretanto, começámos a preparar a viagem: sapatos, meias, vestido, casaquinho de malha. Afadigada a pensar nas minhas vestimentas de festa – ir a Peniche era uma festa das maiores -  esqueci-me de perguntar o que minha mãe ia vestir, ou porque não tinha feito a permanente do costume. Antes me insurgi porque o casaco me estava curto de mangas e corpo. Minha mãe, não tens outro filha, tens que levar esse; abotoas bem e puxas a manga do vestido para baixo. Amuei a esticar as mangas, vou toda feia. E minha mãe, o pai vai gostar de te ver sem as tranças. O Luís olhava-me e, estás esquisita. Lídia passou por mim e de raspão atirou um pfff...tão minoritário  que dei por mim com o saco plástico das tranças a recordar o aviso de minha mãe, depois não podes colá-las. E prometi o que antes não me parecia possível: vou deixar crescer o cabelo outra vez.

Mas os vizinhos são às vezes providenciais. O acerto do Luís a definir-me levou uma vizinha vivaça a interessar-se pela minha cabeça e engendrar  um penteado novo para ir de visita a meu pai. E é claro que eu amei. A fardamenta passou de imediato para segundo plano: eu ia dormir de rolos na cabeça e usar caracóis. A vizinha emprestava-me os rolos da filha e garantia que saiam canudos e que não desmanchavam de maneira ou feitio. E não me podia ter dito melhor coisa. Desconhecia tais artefactos, mas a ideia de me passear de canudos enchia-me o ego.

Sem comentários:

Enviar um comentário