Era
uma vez o tempo em que me fiz refém deste hotel a que se chega em escorrega de
alcatrão ladeado de viço arbóreo. Descobri-o por
recomendação de uma garota de eterno ranho, companheira de algum do meu tempo
maravilha. Por entre puxadelas de monco, nariz emergindo do lenço, fungava, estou
curada, já não volto; fui para lá desde bebé. Mercê deste bom exemplo, retive o
nome do lugar e depois foi só procurar.
Na
base afundada da aldeia, a ampla fachada do edifício transpõe. É uma construção
maciça e de elegância sóbria, a traça obedecendo a um plano de simetrias e
linhas rectas que definem ângulos de igual natureza. Conserva a cor branca
debruada a pedra, janelas e portas altas, finas linhas verdes em passe partout,
algumas varandas de ferro forjado a dar graça às portas-janela ou vestindo janelas curtas e ogivadas.
Ignoro-lhe a história, mas não é difícil pensá-lo resguardo militar, talvez no
tempo das invasões francesas (preciso investigar isto). No atravessar de corredores
espaçosos há uns restos de sola de bota prepotente; na entrada principal, de
frente para o terreiro e junto às lanternas, resquícios de aprumadas sentinelas; no silêncio dos
salões, vozes de comando a trovejar. E, na saleta de pouca luz, onde agora
reinam futebóis via satélite, houve recados e planos secretos de ataque,
confidências de quem se sabe à beira de deixar cair o país, encarniçamentos
pátrios de peito feito às balas. E medo. Muito medo a entranhar no meio metro
de espessura das paredes. As altas patentes e os sem eira nem beira, que nisto de medos somos todos muito iguais, e se não
volto. E se fico estropiado, cego, maneta. E as paredes hirtas e pálidas a
guardá-los, dorme, amanhã pensas nisso, dorme enquanto a noite e os homens to
permitem.
Mas,
aparte o espírito militar que o habita sem dano, tudo hoje é diverso. Em cada
quarto mora uma doença, um achaque, uma perversidade de que o corpo reclama e
que atola a babar no salão de refeições, em júbilo de mandíbulas. Nas gordas
tardes de digestão, os homens repassam o horário do futebol vezes incontáveis,
dormem sestas, lêem o jornal. As
mulheres bebem cafés, flanam umas com as outras reiterando propósitos de dietas
de açucares, gorduras e farináceos – o
que será que elas comem - e que colapsam diários, à vista de pratos infractores
e sobremesas tentadoras. Um facto curioso é que o hotel serve essencialmente a
terceira idade, mas ninguém reclama o prato de dieta. E é raro o hóspede que dispensa o doce. Doses substanciais de compota, tábua de queijos, doces de
colher. Viver para comer não é vida. Mas talvez seja o prazer ainda possível.
Porém, salvo uma ou outra excepção, a população oscila entre os 65/70. É só
isto que resta, comer?! Ainda assim, discorro que talvez tenham
explorado pouco e eu esteja rodeada de gente que não viveu tudo aquilo por que
passou. Feliz ou infelizmente, a vida só tem perfume se macera. Parece
ascético, mas é apenas verdade: é a sentir as coisas e as pessoas – tanta vez a
sofrê-las - que as amamos. Não há outra maneira. Quem sabe, esta gente não
chegou a conhecer o prazer de estar submerso numa fita de cinema, ali, à mercê
dos actores e do enredo; de uma ida ao teatro a empolgar-nos a alma; do embalo
celestial num concerto; de um passeio simples e sempre raro, mesmo em
lugares habituais, é outra a brisa e a luz, nós mesmos somos outros. Quem sabe,
pouco gostam de ler e já desapetecem viagens. E o computador, essa janela
de mundo, se lhes cerra misterioso. Quem sabe, os ouvidos embotaram ao cantarolar do rio e o hotel
vale apenas pelo conforto que oferece. Falta entusiasmo para andar os caminhos
até às pontes sobre o Pantanha e o Mondego, o desvanecimento com a natureza que, qual canto de cisne, lenta se
despede do verão em amarelos que avermelham, a cor a intensificar rente ao fim; a admiração pela grandeza das pedras e das árvores que
resistem aos anos.
Mas talvez nem lhes falte nada senão o Jackdaniels que, alquebrados, pedem depois do jantar, uma dificuldade a sentarem-se no banco do bar, as senhoras amparando com garra zelosa, olha se cais. E eu que resisto a pedir um chá. Ó vida!
Mas talvez nem lhes falte nada senão o Jackdaniels que, alquebrados, pedem depois do jantar, uma dificuldade a sentarem-se no banco do bar, as senhoras amparando com garra zelosa, olha se cais. E eu que resisto a pedir um chá. Ó vida!
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