quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Desconsiderações e Prazeres Pequenos

Era uma vez o tempo em que me fiz refém deste hotel a que se chega em escorrega de alcatrão ladeado  de viço arbóreo.  Descobri-o por recomendação de uma garota de eterno ranho, companheira de algum do meu tempo maravilha. Por entre puxadelas de monco, nariz emergindo do lenço, fungava, estou curada, já não volto; fui para lá desde bebé. Mercê deste bom exemplo, retive o nome do lugar e depois foi só procurar.
Na base afundada da aldeia, a ampla fachada do edifício transpõe. É uma construção maciça e de elegância sóbria, a traça obedecendo a um plano de simetrias e linhas rectas que definem ângulos de igual natureza. Conserva a cor branca debruada a pedra, janelas e portas altas, finas linhas verdes em passe partout, algumas varandas de ferro forjado a dar graça às portas-janela ou vestindo janelas curtas e ogivadas. Ignoro-lhe a história, mas não é difícil pensá-lo resguardo militar, talvez no tempo das invasões francesas (preciso investigar isto). No atravessar de corredores espaçosos há uns restos de sola de bota prepotente; na entrada principal, de frente para o terreiro e junto às lanternas, resquícios de aprumadas sentinelas; no silêncio dos salões, vozes de comando a trovejar. E, na saleta de pouca luz, onde agora reinam futebóis via satélite, houve recados e planos secretos de ataque, confidências de quem se sabe à beira de deixar cair o país, encarniçamentos pátrios de peito feito às balas. E medo. Muito medo a entranhar no meio metro de espessura das paredes. As altas patentes e os sem eira nem beira, que nisto de medos somos todos muito iguais, e se não volto. E se fico estropiado, cego, maneta. E as paredes hirtas e pálidas a guardá-los, dorme, amanhã pensas nisso, dorme enquanto a noite e os homens to permitem.
Mas, aparte o espírito militar que o habita sem dano, tudo hoje é diverso. Em cada quarto mora uma doença, um achaque, uma perversidade de que o corpo reclama e que atola a babar no salão de refeições, em júbilo de mandíbulas. Nas gordas tardes de digestão, os homens repassam o horário do futebol vezes incontáveis, dormem sestas, lêem o jornal.  As mulheres bebem cafés, flanam umas com as outras reiterando propósitos de dietas de açucares, gorduras  e farináceos – o que será que elas comem - e que colapsam diários, à vista de pratos infractores e sobremesas tentadoras. Um facto curioso é que o hotel serve essencialmente a terceira idade, mas ninguém reclama o prato de dieta. E é raro o hóspede que dispensa o doce. Doses substanciais de compota, tábua de queijos, doces de colher. Viver para comer não é vida. Mas talvez seja o prazer ainda possível. Porém, salvo uma ou outra excepção, a população oscila entre os 65/70. É só isto que resta, comer?! Ainda assim, discorro que talvez tenham explorado pouco e eu esteja rodeada de gente que não viveu tudo aquilo por que passou. Feliz ou infelizmente, a vida só tem perfume se macera. Parece ascético, mas é apenas verdade: é a sentir as coisas e as pessoas – tanta vez a sofrê-las - que as amamos. Não há outra maneira. Quem sabe, esta gente não chegou a conhecer o prazer de estar submerso numa fita de cinema, ali, à mercê dos actores e do enredo; de uma ida ao teatro a empolgar-nos a alma; do embalo celestial num concerto; de um passeio simples e sempre raro, mesmo em lugares habituais, é outra a brisa e a luz, nós mesmos somos outros. Quem sabe, pouco gostam de ler e já desapetecem viagens. E o computador, essa janela de mundo, se lhes cerra misterioso. Quem sabe, os ouvidos embotaram ao cantarolar do rio e o hotel vale apenas pelo conforto que oferece. Falta entusiasmo para andar os caminhos até às pontes sobre o Pantanha e o Mondego, o desvanecimento com a natureza que, qual canto de cisne, lenta se despede do verão em amarelos que avermelham, a cor a intensificar rente ao fim; a admiração pela grandeza das pedras e das árvores que resistem aos anos. 
Mas talvez nem lhes falte nada senão o Jackdaniels que, alquebrados, pedem depois do jantar, uma dificuldade a sentarem-se no banco do bar, as senhoras amparando com garra zelosa, olha se cais. E eu que resisto a pedir um chá. Ó vida!


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