Sento-me
na cama como se ela seja de uma vida inteira – é boa - e fora da ogiva
acenam-me as folhas perenes do acer (sei lá se um acer, o nome veio-me). Tão
verdes. Se estender a mão, corpo rente ao bordado de ferro, toco-lhes. Sinto-me
bem neste quarto que já foi meu de outra vez e tem uma copa de pássaros
matinais enquadrada na ogiva. Então, como agora, acompanhada de mim. E eu ser
mim e estar comigo são duas coisas que me acontecem pouco. Tenho uma TV que não
ligo, um aquecedor de parede que sem braços me acolhe e salva de frios, dois
livros, alguns filmes, um portátil. Não me faltam doces nem refeições a
preceito. Subtraída à domesticidade, escuso-me a loiça, roupa, pó, víveres.
Durante uns dias sou o eu de mim. Eu comigo. Viva!
Mirabolando
– entremeio voltinhas com estar quieta -, descobri um caminho que liga o hotel
à ponte maior sobre o Mondego e quedo-me por ali a pensar nas diferenças deste
Portugal que eu amo. De cores variegadas, o campo do norte, rico de árvores e
verdes, denota em fundo o som de água corrente, um aquoso saltitado de pedras em
declive. Por oposição (ou por coração, que é, neste caso, o mesmo) lembrei o
meu Alentejo, o tão de minh’alma como o de Florbela, que é o mesmíssimo amor e
a mesmíssima terra de verão ardente e inverno de frio seco. O meu Alentejo, dizia
eu, amareleja pelo chão de fenos cortados, sem graça, sem cambiantes, com raras
árvores que amarelecem, os sobreiros a resistir às estações e a tudo, braços
estendidos ao acaso, que o sofrimento não escolhe posição e quer lá saber de
estéticas, o verde baço das folhas a perder cor. Os sobreiros que os homens
despem com um machadinho, habilidade de mil cuidados, se estiver a aleijar,
diga, que os alentejanos de verdade são delicados com tudo que existe e não os
ofende, e mais com quem lhes dá o sustento. E isto se não vier gente que
degenerou e apressada, pela calada da noite, sem arte ou jeito, lhes espeta a
machada e arranca a cortiça a murro e pontapé. Lanhos por todo o lado, as
árvores sem um ai, o sangue a entupir lá dentro e pode mesmo que se esvaiam. E
quando os corticeiros chegam, eles ali, no mesmo lugar, doentes de às vezes não
haver mais cortiça que possa vesti-los, nem em nove anos nem em ano nenhum que
os sobreiros são como as mulheres, um desmancho mal feito e ficam estéreis ou
morrem. E é assim. No Norte não sei. Mas, há uns dias atrás, vi uns sobreiros
em Mangualde que me garantiram, não, não, a gente aqui cresce a valer e quanto
nos apetece, olhe lá para baixo, veja onde estão as raízes. E de facto olhei. E
eles eram altos, altos. Tinham os braços bem arranjados, as folhas verdinhas e
até lustrosas. Seria da proximidade da Senhora do Castelo?! Milagre, milagre.
Mas eles de novo, não, não. Nós, os poucos que por aqui vivemos, somos todos
assim, a terra é boa e dá sustento. E eu a dar a volta à senhora do Castelo,
milhentos degraus a descer e a subir e a vê-los esguios, elegantes até, braços
airosos e postos em seu cuidado de ramo de árvore. Alguns, graciosamente
despidos, nada de vergonhas palermas, o número treze escrito a cal. E umas
bolotinhas a começar, em promessa verdurenga, para o verão estamos prontas.
A
Senhora em sua casa pequena e airosa, varrida da talha dourada que me arrefece
a fé. Um tecto e o mais em azul-cinza e branco, tudo tão claro que dá gosto.
Entrei e não sabia que pedir-lhe enquanto os devotos subiam à torre. E olhem,
pedi por vós, sobreiros da minha terra. Que tanto vos gosto e entendo no exacto
de serem como são. E peço muita desculpa às árvores do Norte que têm uma beleza
e porte esplêndidos e, no Outono, são um quadro extraordinário de bonito.
Falta-lhes a alma dos meus sobreiros mal paridos e desgrenhados. Que só crescem
o que podem e sofrem agruras de todo o canto, da terra empoeirada que dá o que
tem e é pouco, do clima que os tolhe e envelhece antes da hora. E agora, até
dos homens que lhes pilham a cortiça sem dó e os adoecem de morte.
Mãe
do céu, rezei pela família.
Sem comentários:
Enviar um comentário