quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Viagem a Tóquio

O quotidiano não me aborrece, põe-me à vontade, nascemos um para o outro. Se temo encontrar alguém, peço a Deus que me apareça de chinelos, avental, barba por fazer, sapatilhas, sem grande jeito de pente...e, raciocínio retardado que tenho, só há poucos anos compreendi que as pessoas no seu normal, não aperaltadas, me assustam menos. Todo o aparato, por pequeno que seja, me tolhe e embioca. Mas o filme Viagem a Tóquio seduziu-me: é calmo e deixa espaço para pensar entre os diálogos; as mulheres, todas de tornozelos grossos, andam descalças pela casa e de avental o que me deixa à vontade; não tem violência, guerra, armas de fogo em vómito mortífero, sangue a esguichar. Não. Como o título indica,  é sobre uma viagem a Tóquio:  um casal de velhos japoneses de visita à prole que não vêem há anos e a uma cidade que nunca viram. Têm ainda com eles a filha mais nova, solteira e professora na aldeia, que os ajuda a preparar a partida. Não há objectos atirados à pressa para as malas, roupas mal dobradas, esquecimentos inoportunos. Há tempo neste filme. Ou, sobretudo, nesta casa. E haver tempo é um láudano, acalma o espectador. Que o tempo dos filhos, contrário à expectativa, vai revelar-se uma mini saia. Os dois velhos partem esperançados e, depois de viagem bem comprida, chegam na ilusão de ver Tóquio. Não tanto por desejarem conhecer, como para saborearem o amor filial que, supõem em amoroso agrado, se desvela a guiá-los  pela cidade desconhecida. Mas os netos evitam estreitar relações e sofrem mal a intrusão dos avós que lhes impede  as rotinas comodistas. E os filhos, após a recepção inicial, vão-se esgueirando, desculpando com a vida e o trabalho. Não passeiam os pais e acabam mesmo por decidir enviá-los para um barulhento hotel de termas onde falta tudo que necessitam: descanso, um quotidiano organizado, o carinho que demandavam. Ambos concluem que a cidade lhes mudou o amor dos rebentos, já não são os mesmos filhos que criaram. Eles, os dois velhos, são peso que se emponta.  E decidem regressar a casa.
Mas, no meio do desamor, por entre as franjas da obrigação filial, surge a flor à beira do pântano: a nora viúva, uma bonita japonesa que os passeia e recebe na sua casa pobre como os filhos não fizeram nas suas mais ricas; que pede à vizinha as taças e o saqué para agradar aos sogros; que tira um dia de férias e passeia com eles. E quando, na ideia do regresso a sua casa, inesperados voltam das termas, não têm onde dormir. Ela fica com a nora que a recebe alegre da companhia e amorosamente a massaja, lava, serve e dorme a seu lado num bem querer genuíno que nos lava a alma. Que puxa das suas magras economias e lhe dá parte como prenda.  Sem cama, ele procura um amigo e erram de bar em bar, cada um com as suas desilusões  sobre a descendência a quem a vida mudou e esfriou o coração onde os pais perderam lugar.
Este filme existiu antes de mim, é de 1953. Mas tanto podia ser hoje! O certo é que os velhos se vão apagando na medida em que perdem utilidade. E ser para alguma coisa é função de máquina ou objecto. Não é função de pessoa. A família, uma comunidade cujo lastro são os afectos, perde a matriz e reproduz  a impiedade social. Copiando o filme, os filhos chegam para o funeral e vão embora numa pressa, sobraçando bens que querem para si. Não são de parar e ajudar a dor de quem fica, como fez aquela nora exemplar que floriu a noite de Tóquio para grata surpresa da sogra.
            Agradou-me o discernimento dos dois velhos: a sabedoria de conhecer em cada um defeitos e qualidades, de saberem e agirem sem alarde quando se sentem a mais, de valorizarem e serem gratos. Que, nos dias que correm, a gratidão não é um bem de consumo fácil .

Bem haja Yasugiro Ozu. E mais quem recomendou esta fita.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Violentos Desastres

Vou por este Alentejo fora a pensar em ti. Impotente.  Desejando que o meu pensamento alivie nem sei o quê da tua dor.  E a natureza impávida e radiosa, as árvores da beira de estrada doirando o seu outono soalheiro pelas curvas da planície. O nosso Alentejo como uma pintura, reverdecido e abandonado  à pontualidade cálida do sol. Pelas colinas,  alvas igrejas guardam o casario em cacho. Sem atentar em ti. Sem te saber. Sem cuidar que a violência nunca é doméstica. A violência é odiosa e quebra, esborracha sem dó, é bravia, não escolhe sítio. Em contraponto, a planície despega-se de gotas nocturnas e, alheia a dramas,  entretém-se a arredondar suavidades bucólicas pelos montes. Por entre verdes perenes espreitam copas amarelas, gotas de mel  a derramar na paisagem.  Há um soalhento pacífico no ar da manhã. Mas para ti não houve doçura, nada ontem te foi suave. Fustigaram-te marteladas raivosas, a fúria do ferro contra a carne  a buscar o  osso. A interromper-te a tranquilidade dos nervos e dos sistemas, um estampido de medo e assombro no teu interior e que ninguém ouviu, o teu corpo a descoberto, reunindo forças inócuas contra o animal armado. Que é assim o lado mais torpe e louco do homem na vertigem caudalosa do amor próprio ferido, corroído pela ferrugem do desvario. Revejo-nos em grupo, passeando. Era o tempo em que ainda as mãos se confiavam uma à outra, tu a desvaneceres no avião, fotografando nuvens enquanto eu me perdia em companhias de vôo que não ocupam espaço e são sempre as minhas. E ia jurar que não vocês e eu, mas eu e outra gente que vocês desconhecem e é com quem viajo o tempo todo, mesmo se calha espreitar as nuvens da objectiva e responder e perguntar.
E tu, sempre triste. Tão de uma tristeza por dentro dos olhos que mesmo sorrindo não despegava. Mas continuavas a  passar na minha porta de mão na mão. Admirava-te. Uma avó passeando de mão dada. Achava o gesto tão bonito. E a mão na mão o que é senão isso, que uma mão pode abandonar-se dentro de outra e os dois corações tão dispersos. Mas não foi isso que pensei. Ou talvez eu não tenha querido pensar.
Passo junto ao açude impenetrável,  águas escuras tão quietas como a tua tristeza calada e sem um remoinho. E eu junto de quem privava contigo, a encapelar, o que se passa, de onde pode vir tanta tristeza. E as gentes alisando o espelho da cisterna, é impressão, deixa-te de ideias. E o açude para mim, palerma, não sentias que era verdade? O fascínio do açude que me arrepia em mistério e fundura, a  dar-me as costas numa indiferença fechada, tinhas obrigação de saber. E tinha.
Mas nada soube.  
Por vezes caminhavas sozinha e vinhas até mim num sorriso de conversa – vieste quando foste avó, lembras-te? Mais tarde, trabalhámos juntas numa formação que correu bem e tratava-te por um diminutivo terno que não te demovia as depressões. O meu diminutivo nunca chegou onde devia, não avançou, ficou à bordinha de ti, quedou-se no limiar. Como a minha intuição. Reagiu à tristeza do olhar e acomodou-se de seguida.
Na dobra de uma curva, surge  Vale de Leite que desde a adolescência me suscita o éden e onde nunca irei para não ter de concluir que é apenas uma quintinha normal. Sorrio-lhe da estrada na comunhão do segredo que nos une, certa de que só eu sei deste paraíso leitoso em contracurva. Mas tu dolorosa. No hospital. A recuperar de um inferno com um monstro a perseguir-te.

Contudo,  dormiu a teu lado e contigo muitos anos. Amou-te. Quiseram-se bem. O que a vida nos faz!

domingo, 27 de novembro de 2016

Ladrões de Bicicletas

A miséria é um facto que me tolhe,  mar encapelado submergindo a vontade.  Voltou a assolar-me em Ladrões de bicicletas. De Sica no seu melhor. Um filme curto e todo do seu tempo, de quando a pobreza era tsunami que levava de vencida toda a luta. De Sica materializa o ditado “A ocasião faz o ladrão”. E fá-lo tal qual como era então a vida: a sobrepôr misérias, esgravatando no meio de pobrezas hiantes e colossais, madrugadas escuras de ruas repletas de bicicletas roubadas, à venda por partes e peças. Ou inteiras. A usura desvairada dos pobres a explorar o semelhante, a comer-lhe bocados de dignidade, como se o barco em que seguem não seja o mesmo. E o protagonista que conseguiu um emprego depois  de dois anos à míngua, que empenhou a roupa de cama para retomar a bicla que a fome pusera no prego e o novo emprego exigia. E que a deixa roubar logo no primeiro dia. Azar. Má sorte. A desdita da tentativa de roubo mal sucedida e que acompanhamos a torcer por ele, sem pensarmos que faz a outro o que lhe fizeram e ainda nos dói. A vergonha que o invade pelo filho. E a criança que não despega. Que, qual carraça, o acompanha momento a momento. Que, numa alegria orgulhosa,  volta a arear a bicicleta depois de desempenhada. Que, após o roubo,  está a seu lado, procurando madrugada fora, debaixo de chuva, num mar de bicicletas e peças soltas, olhos de raio x. Que segue o pai na sua razão sempre gorada para recuperá-la. Que come com ele a última ceia. Que, na mão que lhe estende final, mostra bem onde chega o entendimento dos dois. O certo é que não se atinge a profundidade sem sofrimento partilhado. O resto é conversa. E eles têm-se um ao outro até aos escaninhos da alma. Mas, e apesar do amor unido que os sustenta e perpassa na família, que triste é saber as nódoas negras da vida da gente. Que triste.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Coisas

A maioria dos provincianos como eu vai a Lisboa  e volta recheado de novidades. Ele são livros, modas, sapatos, carteiras, lingerie... No comboio de regresso, contam-me as compras com pormenor e, num resmalhar de sacos plásticos onde o braço se afunda em pescaria grossa, chegam mesmo a exibi-las para apreço. Quedo-me embasbacada perante tanta maravilha que não enxerguei. Nunca vejo pechinchas e bonitezas genuínas senão na mão da outra gente, ainda que pare nas mesmas montras, atravesse as mesmas ruas, entre nas mesmas lojas.  Pode parecer-vos que volto de mãos a abanar, mas não. Trago lembranças. Depois de apetecer padrões, palpar os cabedais, avaliar rendas e etc, chega-me a vez de mostrar. E a minha vez sou eu. Na minha vez entra o riso, o sorriso, a palermice encartada que idiotamente me veste. Porque, na verdade, ainda não entendi se há coisas que só a mim acontecem, ou se acontecem a toda a gente e só eu as conto. Pois. Não sei. E nem agora isso tem interesse.
Bom. Hoje, por exemplo, fui à ginecologista, função que sofro mal e a que afecto um premente desejo de fuga. Já mudei do masculino para o feminino, mas concluo que o género do observador não me altera o sentir. I hate that. Há anos que não nos víamos - eu e a médica. Mas nenhuma de nós é efusiva ou gosta particularmente da outra. Portanto, sentei-me na sua frente a curtir a ansiedade e a antecipar, a seguir é que vai ser o elas. Ou seja, a sofrer um bocadinho pouco. E ela à nora com a informática. Aflita porque queria consultar-me e parece que o sistema me negava – o palerma do sistema. 
Quando finalmente o meu eu digital lhe chegou, mandou o meu ser físico e palpável aligeirar-se de roupas na sala de tortura e lá veio a enfermeira pôr o lençol – sempre me deixa um pouco mais confortável – e ajeitar as pernas. E fica uma pessoa naquele esterlaio. É que não sei como é que alguém se pode sentir à vontade em posição tão estrambólica e à espera que se acenda uma lâmpada que decerto nos desvela o interior mais interno e só não chega aos gorgomilos por haver carne emparedada de permeio. 
Enfim. O mau, mesmo mau, é aquela goela de pato com bico e tudo a enfiar-se por uma pessoa dentro. Estava eu tentando controlar-me para evitar gritos quando oiço a médica, a senhora não tem útero. Já foi operada? E eu admiradíssima, as pernas a retesar nos suportes, não tenho?! Mas não fiz qualquer cirurgia para esses lados. E ela a espreitar e magoar-me ainda mais, não o vejo, não tem. E eu a empurrá-la na busca apesar daquele bico aberto cá dentro, há de andar por aí, penso eu - e numa réstea já dubitativa -. Só se entretanto o perdi, mas não dei por isso. Entretanto, a enfermeira aproximou-se e espreitou também (não há direito, fazerem isto a uma pessoa).  Eu com vontade de mandar passear o pato, dar uma volta num lago qualquer, enfim, deixar-me em paz. E a médica a forcejar a goela aberta, tem que estar aqui então, mas não o encontro. 
E depois de procurar com o que eu imagino fosse mesmo aquele bico rombo que só me doía, está aqui. Desculpe, está aqui, não o via. 
Respirei. 
E depois seguiu-se o de sempre: lamelas, palpações, requisição de exames... o diabo a sete. Num ápice, vesti-me e desapareci do consultório.
Para que conste: estou de mal com o meu útero. Não me avisou, o fedelho. E deve estar mais enfezado que as lonas de um pneu vazio. Nos automóveis, se temos um furo, é um chinfrim desgraçado. Mas em nós tudo murcha sossegadamente. Nem um adeusinho, vou involuir, passe bem. Ora bolas.

Garanto, se eu pudesse ou acaso soubesse como fazer, deixava-o cair no alcatrão. Havia de passar um carro e atropelá-lo. Por causa das coisas.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Noites de Novembro

Às 17, 50, em Lisboa, tínhamos um encontro.
 Tínhamos.
 Um encontro casual de mim contigo
Tu toda acesa de encantos. Extrema.
Sobressalto que ressalta
Ovalada magia em rasto de sol
Quimérica elipse a beijar o mundo
Em  suspenso silêncio, ao rés da noite.
E nesta hora desfalecida, eu sei, fazia-te um altar.
Rojava-me no chão
Pedia, leva-me contigo.
Mas ó triste vida,
Tens matriz de faz de conta
 Minha doce super-Lua. 

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Mundo ao Contrário

Poucas vezes durmo até ser manhã. A maior parte das noites acordo com os teus pés descalços a arrastarem pelo chão no meio do silêncio entrecortado por estalidos de móveis, um cão a ladrar ao fundo da rua. E antes que chegues à porta do quarto, o meu corpo automático já te alcançou. Ainda o sono não descolou da mente e já os meus braços de mola disparada te seguram. Que a gente muda mais que as estações. Ainda não descobri para onde me fugiu o sono pesado com que brincavas, és uma pedra a dormir;  que nuvem extrema me roubou os sonhos em jeito de história; que buraco negro extinguiu os contos fugazes e amenos que esquecia ao acordar e me faziam sorrir dia aberto, se um pormenor os trazia à memória.  Tu divertida, conta lá o que sonhaste hoje. E, se me lembrava, eu a escalar montanhas a pique, a alcançar  castelos escancarados como janelas de par em par; eu com botas de sete léguas em episódios cheios de portas que nasciam não se sabe de quê, que antes não estavam lá, e se abriam para aventuras inocentes. Olhavas-me meia decepcionada, não sonhas comigo, nem te perdes de amores por ninguém?! Eu quase envergonhado de te excluir e dos enredos de amor ausentes, não, nunca sonhei contigo ou com alguém que conheça, nos meus sonhos eu sou outro qualquer num mundo de gente que só neles existe. Demoravas-te  pensativa, uma mão maquinal a acamar madeixas atrás da orelha e que uma vez  libertas se quedavam em arco gracioso rente à bochecha. E eu gostava de te ver assim, suspensa. Se inquiria, o que estás a fazer, quedavas-te indecisa, não sei, se calhar pensava. As saudades que tenho de ti e dos teus pensamentos!
Hoje durmo pouco e sempre contigo na mente. Quando os meus braços de mola te agarram a meio do quarto, naquele instante breve em que és memória e o meu sono não te deixa ainda ser inteiro presente, volto atrás. Desprendes o mesmo aconchego a lençois e edredon, abandonas-te – parece-me que te abandonas – ao meu corpo no jeito antigo. Demoro-me a sentir os teus cabelos sobre o externo. E tu murmuras, Pai, e quebras o encanto. Levo-te à cama, desvio as cobertas, sento-te e encaminho-te as pernas. Depois, aconchego-te as roupas, dou-te um beijo e repetes, Pai. Fico a teu lado até que os olhos se te cerram de novo. Fecho a luz. Mudo de quarto. Deito-me. As saudades que eu tenho de ti! E rememoro a tua forma de dormir agora tão outra. A tua mãe para mim, não dormes na mesma cama? E eu, não tenho coragem. E não tenho. Dou-te banho, passo-te a esponja com o gel perfumado que preferias, lavo-te a cabeça com champô de maçã e revejo-te o rosto contente, cabelo molhado debaixo do meu pescoço, cheira lá e dá-me uma dentada pequenina. E eu, mãos à bolina no cabelo húmido, renasces em cada vez que sais da água. E agora alheias, páras os olhos em qualquer fundo que desconheço e deixas-te manobrar, confias. Seco-te em cuidados de toalha materna, com a ternura desembrulhada de desejo, um carinho protector na felpa de algodão. Seco-te a pobreza das pernas, do sexo, do ânus, e tu, ausente de ti. Sem o teu cheiro. A tua pele mudou e já não mistura com o perfume. Cheiras ao frasco aberto em cima da cómoda e que escondo para não partires ao pegar. Viraste menina a perder a palavra, o tino e o mais. Deixaste de saber vestir-te, não comes sozinha, já não consegues fugir de casa. Fizeste-te dócil ao babete e à sopa passada e o médico antecipa seringas nas crises, diz que engolir é um acto reflexo, que, com sopa líquida, a seringa resolve. Que, breve, te confinas à cama. Em tempos, se a filha nos visitava, tu de olhar desinteressado, não conheço esta menina. E para ela, quem é a menina? A filha dizia-te o nome que repetias em mero serviço mecânico. Não a reconhecias.

Perdi quem eras para um fundo de vidros partidos. Foste caindo. A esfacelar. Quem sabe, melhor se também eu lá dentro. Contigo. Sem o algoz da consciência. Soldadinho e bailarina.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

A embasbacar na minha pessoa em cada esquina,  pouco olhei a Lisboa que acordava. Tinha passado deslumbrada no descomunal do Terreiro do Paço,  D. José altaneiro que enxerguei mal, os olhos a esquadrinhar, onde é que ele acaba, e minha mãe, não sejas tonta, isso é o cavalo, não vês o rei lá em cima, eu quase uma vénia a um sapato no estribo e a queixa impaciente,  não chego lá com os olhos. Minha mãe a puxar-me pela mão, desatendida de eu ser anã, e a meter por uma rua de montras com muito passo por andar, depois da pergunta medrosa a um senhor - de certeza um senhor, usava chapéu, estava barbeado e tinha gravata - cheio de pressas que lhe esticou um dedo e seguiu. Por via disso convenci-me que era mudo, mas minha mãe apenas, deixa-me em paz que tenho de ir com atenção, não me posso perder, continua a ver o penteado nas montras que é melhor. E só acordei do desacerto de vaidade contemplativa quando arreou a bagagem arfante ao rés de uma carreira desconhecida, a expiração do monstro uma peste nevoenta de gasóleo que se insinuava até à epiglote e nem sei mesmo se não chegava aos alvéolos de uma assentada, e ela a procurar nos bolsos, passa lá à minha frente que tenho de comprar os bilhetes. Eu reticente de pés, o dedo grande raso no chão, vou não vou, carreiras brancas e verdes a pespegarem-se-me na mente e o monstro branco, cinzento e encarnado a inquietar-me. Eu a desconfiar que me levasse para o estrangeiro em vez de Peniche, preocupada de não conhecermos lá ninguém e não termos casa e nem sabermos dizer coisa que se entendesse. Que, depois de comido o avio que deixava meu pai à míngua, agastado de nos esperar em vão, morríamos de fome e frio, tão certo como dois e dois serem quatro. A mão de minha mãe que já retomara o lugar no saco, a largá-lo, as palmas nas minhas costas sem cerimónia e a secura, entra e cala-te.
 E só quando rolávamos estrada fora, o olho de um, dois, três, nos sacos que amolgavam sob os nossos pés, cuidado não pises esse que tem o bolo, me elucidou que os autocarros mudavam de cor consoante a companhia a que pertenciam. Fiquei surpresa, o que são companhias, mas descaiu-me o arco da pergunta. O seu cansaço de olhos fechados alastrava pelo assento, alguns cabelos apeados dos ganchos desciam sobre o rosto em linhas escuras e fora de esquadria e, em vez de dedos diligentes a afastá-los, as mãos como mortas, deitadas de atravesso no regaço escuro do vestido  às cornucópias. Virei-me a receber as novidades que me vinham  da  janela. Fui encostando ao vidro devagar, sacudida pela dureza de travões e desníveis do caminho, o meu mundo em desfocagem rápida. Em alguns troços e curvas, o alcatrão esburacava e nascia uma profusão de pedras soltas sob as rodas saltitantes, o corpo aos saltos e balanços qual barquito agoniado em alto mar e eu a cair num vazio ocupado por uma floresta de pestanas, patas de mosca, inúmeras gigantes,  em entrelace sombreado.

Minha mãe acordou-me quando a camioneta virava uma esquina de casas baixas, barras em azul-claro. A meio da rua, uma caixa de correio igual à da mercearia numa parede branca, gente batida de sol em roupa escurecida sentava-se às portas a olhar a carreira sem interesse de maior. E eu incrédula, isto é que é Peniche?! É quase igual à nossa rua, só tem as barras de outra cor. E minha mãe a balançar no corredor, uma ida lá à frente como se mil mãos a empurrá-la para trás, esperas aqui. No regresso, a equilibrar-se em águas revoltas, por cima da ronqueira do carro, é na próxima paragem, ajuda-me a tirar os sacos. Puxou-os de sob os meus pés no ar e fez-me passar na sua frente para o corredor. O carro parou numa chiadeira de travões, embati desamparada na pega cromada do banco da frente e alguém me lançou a mão antes do chão. Ouvi o baque dos sacos, ploque, e senti as mãos de minha mãe, filha. Eu aterrorizada com o sangue que corria e o condutor lá da frente, saem ou não, tenho mais passageiros, não posso ficar aqui a vida toda de porta aberta. E quando passámos, minha mãe na sua voz baixa, obrigada. E ele alto, de nada, e baixinho a olhar-nos o conjunto, quase com pena de nós, coitaditas.

domingo, 6 de novembro de 2016

Por Dentro das Horas

Sento-me na cama como se ela seja de uma vida inteira – é boa - e fora da ogiva acenam-me as folhas perenes do acer (sei lá se um acer, o nome veio-me). Tão verdes. Se estender a mão, corpo rente ao bordado de ferro, toco-lhes. Sinto-me bem neste quarto que já foi meu de outra vez e tem uma copa de pássaros matinais enquadrada na ogiva. Então, como agora, acompanhada de mim. E eu ser mim e estar comigo são duas coisas que me acontecem pouco. Tenho uma TV que não ligo, um aquecedor de parede que sem braços me acolhe e salva de frios, dois livros, alguns filmes, um portátil. Não me faltam doces nem refeições a preceito. Subtraída à domesticidade, escuso-me a loiça, roupa, pó, víveres. Durante uns dias sou o eu de mim. Eu comigo. Viva!
Mirabolando – entremeio voltinhas com estar quieta -, descobri um caminho que liga o hotel à ponte maior sobre o Mondego e quedo-me por ali a pensar nas diferenças deste Portugal que eu amo. De cores variegadas, o campo do norte, rico de árvores e verdes, denota em fundo o som de água corrente, um aquoso saltitado de pedras em declive. Por oposição (ou por coração, que é, neste caso, o mesmo) lembrei o meu Alentejo, o tão de minh’alma como o de Florbela, que é o mesmíssimo amor e a mesmíssima terra de verão ardente e inverno de frio seco. O meu Alentejo, dizia eu, amareleja pelo chão de fenos cortados, sem graça, sem cambiantes, com raras árvores que amarelecem, os sobreiros a resistir às estações e a tudo, braços estendidos ao acaso, que o sofrimento não escolhe posição e quer lá saber de estéticas, o verde baço das folhas a perder cor. Os sobreiros que os homens despem com um machadinho, habilidade de mil cuidados, se estiver a aleijar, diga, que os alentejanos de verdade são delicados com tudo que existe e não os ofende, e mais com quem lhes dá o sustento. E isto se não vier gente que degenerou e apressada, pela calada da noite, sem arte ou jeito, lhes espeta a machada e arranca a cortiça a murro e pontapé. Lanhos por todo o lado, as árvores sem um ai, o sangue a entupir lá dentro e pode mesmo que se esvaiam. E quando os corticeiros chegam, eles ali, no mesmo lugar, doentes de às vezes não haver mais cortiça que possa vesti-los, nem em nove anos nem em ano nenhum que os sobreiros são como as mulheres, um desmancho mal feito e ficam estéreis ou morrem. E é assim. No Norte não sei. Mas, há uns dias atrás, vi uns sobreiros em Mangualde que me garantiram, não, não, a gente aqui cresce a valer e quanto nos apetece, olhe lá para baixo, veja onde estão as raízes. E de facto olhei. E eles eram altos, altos. Tinham os braços bem arranjados, as folhas verdinhas e até lustrosas. Seria da proximidade da Senhora do Castelo?! Milagre, milagre. Mas eles de novo, não, não. Nós, os poucos que por aqui vivemos, somos todos assim, a terra é boa e dá sustento. E eu a dar a volta à senhora do Castelo, milhentos degraus a descer e a subir e a vê-los esguios, elegantes até, braços airosos e postos em seu cuidado de ramo de árvore. Alguns, graciosamente despidos, nada de vergonhas palermas, o número treze escrito a cal. E umas bolotinhas a começar, em promessa verdurenga, para o verão estamos prontas.
A Senhora em sua casa pequena e airosa, varrida da talha dourada que me arrefece a fé. Um tecto e o mais em azul-cinza e branco, tudo tão claro que dá gosto. Entrei e não sabia que pedir-lhe enquanto os devotos subiam à torre. E olhem, pedi por vós, sobreiros da minha terra. Que tanto vos gosto e entendo no exacto de serem como são. E peço muita desculpa às árvores do Norte que têm uma beleza e porte esplêndidos e, no Outono, são um quadro extraordinário de bonito. Falta-lhes a alma dos meus sobreiros mal paridos e desgrenhados. Que só crescem o que podem e sofrem agruras de todo o canto, da terra empoeirada que dá o que tem e é pouco, do clima que os tolhe e envelhece antes da hora. E agora, até dos homens que lhes pilham a cortiça sem dó e os adoecem de morte.

Mãe do céu, rezei pela família.

sábado, 5 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

Dias antes da viagem, minha mãe começou a arranjar roupas e mimos. Cirandava a um lado e a outro e eu encantada no saco plástico dos rolos, a mirá-los na transparência: uns cilindros baixinhos e iguais, cheios de picos a toda a volta, em plástico colorido; cada um com dois furos frontais junto a uma das bases a prender as duas pontas de um elástico com uma bolinha a meio que encaixava na outro lado do cilindro.  Como carraça, deslocava-me no interior do silêncio de minha mãe. Perseguia-a a esbarrar nas suas mãos, a colocar-me no caminho das pernas sacolejando o saco, como é que isto se põe. Farta de mim, a mãe desatou o nó, tirou um rolo e demonstrou, é assim. E ficou olhando a minha mão que palpava o volume de cabelo enrolado, não sei como é que vais dormir com isso. Eu de jacto, não dói nada, nem sinto os picos. E no entanto um ouriço aninhado no meu pescoço e o cabelo repelado a guinchar, que  aperto, tira-me daqui. E tirei. Mais repelões, eu a garantir de viva voz, não dói nada, isto.
             Admirava-me a falta de alegria de minha mãe. Saíamos a passeio, de visita a meu pai, numa terra que não conhecíamos. Quando lho reparei contrapôs séria, são coisas de pessoa crescida filha, não te interessam. Na véspera, madrinha Carmelita apareceu na carreira, olhos piscos de cataratas, pernas troncudas e pés inchados a palpar degraus, o peso do corpo à revessa da bengala. Toda embrulhada em cuidados com os pasteis preferidos de meu pai, ainda assim os tombos da carreira não os tivessem molestado. Em casa, minha mãe com brilho de água nos olhos, a receber o embrulho e abraçá-la, que nem sei o que fez primeiro, ó madrinha. E perderam-se atrás da porta do quarto num aviso, vai brincar. Depois chegou minha avó expedita, toma lá e vai comprar um quarto de açúcar para o chá. E quando cheguei ainda o concílio durava. Eu a ansiar pela noite. A desejar o banho. A querer pôr os rolos na cabeça que com o cabelo molhado é que era. Mas as horas a empastar, a escorrerem pingo a pingo.
Quando enfim o momento chegou, deixei que minha mãe fizesse o trabalho, a virar a cabeça para onde indicava, numa obediência que ela bem entendia. Apertava-me os ouriços e murmurava quase condoída, tu não vais conseguir dormir, filha. E eu cénica, a ensaiar poses de almofada, durmo bem, vou dormir assim, olhe mãe, olhe. Mas não dormi assim. Nem bem. Os ouriços magoavam-me deveras, incomodavam-me as mechas ciliciadas, entaladas naquele matagal de picos, o pescoço pejado de agulhas. Valeu-me a necessidade de sair de madrugada. Quando minha mãe tirou os rolos, os cabelos anquilosavam neles, e penei sem um ai, minha mãe a ameaçar uma tesourada aos mais casmurros. Era noite, não tinhamos espelho e na pressa de pentear constatou, olha, enrolou mas não ficaram canudos. Foi pólvora: pus a mão e convenci-me, estava uma lindeza. Vesti-me às pressas e guardei a demora das mãos a degustar o ondulado para o atalho a caminho da estação enquanto os pés resvalavam nas pedras, o dedo grande mirrado como caracol ao sentir-lhes os agudos, uma vozinha lá em baixo, não se vê nada.
Já na gare, vindo do breu, vimos aproximar um gigantesco olho de luz branca, a trovejar  por entre a fumarada. Subimos os degraus da carruagem, eu içada pelo revisor e minha mãe a dar conta dos pertences, um, dois, três. Na viagem de comboio, as minhas mãos não se coibiam de subir até à surpresa da ondulação, convicta que eu só penteado. As mangas e o casaco curto, fora de órbita; os sapatos cortados na frente e com o dedo grande fora da sola, desimportantes; eu magríssima e com uma meia em baixo e outra em cima, nulo.  E de minha mãe não lembro nada excepto o vestido fino e sem casaco e o cuidado com os sacos, um, dois, três. Depois foi a viagem de barco e aquele aperto na entrada. Ela para mim, agarra bem essa asa do saco senão perco-te. E o susto da minha mão unida à asa, vergões até doer. Sentadas na cave do barco, não vi do rio senão a água suja e sem fundo que espumava para cá e para lá sob a ponte de entrada. E minha mãe numa mirada inquieta, a saltar pernas e braços, um, dois, três.

Só a caminho do Rossio ousei olhar a minha imagem nos vidros das lojas ainda fechadas. De tão enrolado que ficara, parecia que em vez de cabelo, tinha um boné. Achei-me deveras especial e desejei que Lídia pudesse  ver-me. À Luz cinzenta do amanhecer, minha mãe saindo das suas preocupações logísticas, como tu estás, filha, enrolei demais. E eu satisfeita, uma corridinha para ficar uns momentos a mirar-me num vidro lá à frente.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

No Tempo da Escola

Nos dias seguintes, Lídia encarnou a heroína e viveu a escola no sucesso da desgraça. Cheia de si, misturava factos e  imaginação, agitava e dava a provar, fui a primeira a ouvir, eu estava acordadinha e houve um barrote que caiu primeiro e só depois é que veio aquele estrondo tamanhão que acordou toda a gente, a minha cama até saltou, morra aqui ceguinha se não é verdade. Depois, escrutinava o talego da escola e trazia lá do fundo pregos com cimento agarrado, bocados de madeira, fragmentos de azulejo irisado que despediam faísca à luz do sol e injectava invenção a encarecê-los, este prego até voou, estava de patas ao ar mesmo em frente à minha porta do quarto; isto é um bocado da viga do meio que era mais grossa que o eucalipto que está lá à curva e se esmigalhou toda, há falhas de madeira até à estrema da minha terra, olhem bem para o perigo deste bico, e fingia passar-lhe um dedo; e isto é um azulejo da casa de banho, é só um bocadinho, mas brilha muito quando lhe bate o sol. De palmas abertas, alargava as mãos  à mirada de todos. Depois fingia cuidado sôfrego a depor os pedaços na sacola e, longe da vista, a importância do tesouro fermentava. O negócio assomava logo que alguém pedia, dá-me só um prego. E ela, e tu, o que é que me dás para a troca? E foi acumulando bens. Tinha berlindes, pratinhas, vestidos para as bonecas, pedaços de bordado inglês, vidros de fundo de garrafa, as contas do trabalho de casa feitas com prova real e a dos noves fora nada, lanches gulosos de pão branco e mole com margarina a derreter, chocolatinhos com recheio.  Ao longo da semana, comerciou desde bocados de tijolo em forma de pistola a pedras nascidas para jogar à macaca e às cinco pedrinhas, passando por pedaços de azulejo florido que regateava duramente. E eu perdia valor enquanto o espólio crescia. Aprendi-lhe a indiferença certa se a mente assoberbava por qualquer assunto. Então, passava em nossa casa sem olhar, esquecia-me nos recreios e vivia rodeada de novas amigas. Eu, não lhe existia. Na certeza de que a minha amiga acabaria por voltar, comecei a interessar-me pela visita a meu pai, o tricot de minha mãe quase pronto, a curiosidade de Peniche a borbulhar dentro de mim. Finalmente ia conhecer uma terra que tinha mar, elemento a que  a minha mente  não conseguia dar forma precisa, mas me parecia apenas uma grande confusão dado que me diziam que o mar é muita água salgada junta e cheia de peixes variados.  Dava-me algum susto pensar em peixes-espada, sardinhas, cavalas, chicharros, carapaus, dentro da mesma água. E pouco me demorava a pensar na vida da prisão.
            Na loja, o merceeiro olhava-me indiferente e era como se o momento da entrega da carta não tivesse existido. Mas o avô de Lídia observava-me em azul céu e voz branda, minha vizinha pequena, e eu sentia que aqueles olhos de tanto ano não era só a mim que viam.
Quando Dezembro se apresentou, impei de contente. Minha mãe começou por cortar-me as tranças na D. Júlia, senhora de pele branca e lábios pintados de vermelho escurecido que me chamavam “minha queridinha” num mitete de arrulho, expressão que me dava um gozo imortal por julgar que viesse de gostar muito de mim, o que passados uns anos descobri não ser verdade. Saí da cabeleireira quase em em êxtase comigo, mas, ao invés do que supunha, fui a única pessoa satisfeita com a imagem. Minha mãe que amava as tranças passou-me a mão pela franja, agora tenho de me habituar. E mais não disse. As vizinhas limitaram-se a um olhar quase desagradado, ai, o cabelo dela é tão escorrido, também, pouco se pode fazer com aquilo...Mas eu olhava-me no espelho e exultava. Entretanto, começámos a preparar a viagem: sapatos, meias, vestido, casaquinho de malha. Afadigada a pensar nas minhas vestimentas de festa – ir a Peniche era uma festa das maiores -  esqueci-me de perguntar o que minha mãe ia vestir, ou porque não tinha feito a permanente do costume. Antes me insurgi porque o casaco me estava curto de mangas e corpo. Minha mãe, não tens outro filha, tens que levar esse; abotoas bem e puxas a manga do vestido para baixo. Amuei a esticar as mangas, vou toda feia. E minha mãe, o pai vai gostar de te ver sem as tranças. O Luís olhava-me e, estás esquisita. Lídia passou por mim e de raspão atirou um pfff...tão minoritário  que dei por mim com o saco plástico das tranças a recordar o aviso de minha mãe, depois não podes colá-las. E prometi o que antes não me parecia possível: vou deixar crescer o cabelo outra vez.

Mas os vizinhos são às vezes providenciais. O acerto do Luís a definir-me levou uma vizinha vivaça a interessar-se pela minha cabeça e engendrar  um penteado novo para ir de visita a meu pai. E é claro que eu amei. A fardamenta passou de imediato para segundo plano: eu ia dormir de rolos na cabeça e usar caracóis. A vizinha emprestava-me os rolos da filha e garantia que saiam canudos e que não desmanchavam de maneira ou feitio. E não me podia ter dito melhor coisa. Desconhecia tais artefactos, mas a ideia de me passear de canudos enchia-me o ego.

No Tempo da Escola

Naqueles segundos breves em que virou a cabeça, me apercebeu e se levantou,  duas visões fugazes se interpenetraram. Na minha frente estava uma criança desgrenhada, tiritando em sujidade de corpo e roupa: braços, pernas, pés e combinação enodoavam no embaciado do ar. Mas logo adesivou a minha amiga transida de medo, mais pequena e mais sozinha que eu, despida de rispidez e troça, um caracolito acocorado em moxo baixo, abismado na falta da concha. Abraçou-me com olhos marejados, náufrago que, enfim, encontra bóia. Aquele aperto lacrimoso e dócil foi tão inesperado que me tolheu a respiração. Lídia era afoita, segura, de resposta pronta. Por isso, o desacerto improvável que lhe irrompeu algumas vezes, qual ímpeto de sol que atravessa densa nebulosa, encontrou-me sempre desprevenida. Por certo, não fui a amiga que necessitava. Espanejada no meu egoísmo, não vi que Lídia era eu com outra face, tinha os mesmos medos, a mesma tristeza e igual alegria. Que a esperança era em nós duas uma planta a crescer. Quanto tempo precisamos para entender que os outros são um eu outro! Talvez nunca sejamos capazes dessa plenitude comparativa que preserva a diferença. Eu plantara-me na diferença mais fácil, a egocêntrica – a minha, em relação ao resto do mundo humano –. E, naquela madrugada de desgraça, sentada junto de Lídia a um calor físico que minguava em raquitismo de  labaredas, compreendi que, sendo diferentes, os homens se assemelham. Anos mais tarde, chegaria a pensar que talvez “Amar os outros como a nós mesmos” indique apenas isso: amá-los pondo no acto os ingredientes que desejaríamos para sermos amados. Esta ideia aplacava a  interpretação vulgar de “amá-los com a mesma força e intensidade com que cada um se ama a si mesmo”, cuja é impossível aos homens. Assentei este raciocínio no princípio, Deus é bondade e amor; portanto, não pede impossíveis aos homens. Ou, quem sabe, seja eu ainda a tentar humanizar o mandamento. A facilitar. 
Quando minha mãe veio chamar-me, já tínhamos acertado a promessa, onde quer que estivéssemos, se uma chamava, a outra acorria. Saí de casa era dia claro. No exterior, a evidência: as poupanças dos pais, da irmã e do cunhado de Lídia estavam reduzidas a um monumental monte de escombros. O Leão, hirto e em choque, virado ao montão de entulho, a mão a rodar um boné maquinal, ia repetindo a espaços esgazeados, isto nunca me tinha acontecido, que desgraça. As duas mulheres deitavam-lhe olhos de ruindade e carpiam, haja Deus que foi de noite, as gaiatas levavam os dias a brincar ali às casinhas, ai a desgraça que era, e benziam-se ao funesto deste quadro de morte. Na sua indiferença de mundo, o bebé mamava em descanso, uma mão pousada no peito da mãe como quem chegou ao céu e parou. Nesse entretanto, os  homens  afogavam o desgosto na taberna e acendiam ódios crepitantes ao Leão, de repente inimigo, rabiscando sugestões em abordagens rancorosas, desgraçado! Agora levanta-a outra vez e não lhe pagamos um tostão.  E de olhos postos no fundualho dos copos de tinto, matutavam descoroçoados, tanta casa que já fez e logo a nossa é que havia de cair...Deus não quer nada com os pobres é o que é. E assim se atardaram pelo balcão, a desgraça a irmaná-los, encha os dois, e a morrer-lhes afogada em alcool que, no breu da noite seguinte, os havia de estatelar nos pedregulhos da casa, vencidos de estranheza deslembrada, que é isto?, as pedras condoídas, afadigadas a encolher esquinas perigosas, guardando-os de pior mal, durmam que amanhã falamos. E eles um desgosto obediente, mortos para o mundo, apagados até ao alvor do sol que apanhava as mulheres descompostas a arrastá-los para a cama ainda meio inertes, todos pendurados no frágil do corpo feminino, murmurando no seu pescoço  mmmm...mmmmm... pastosos e avinhados, enquanto os pés, marionetas descomandadas, estorcegavam de biqueira, admirados da posição, já não tenho planta do pé?!, as pernas deslembradas, em luta de obediência à voz delas,  homem de um corno que pesa como chumbo, dá uns passos ao menos. 


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Desconsiderações e Prazeres Pequenos

Era uma vez o tempo em que me fiz refém deste hotel a que se chega em escorrega de alcatrão ladeado  de viço arbóreo.  Descobri-o por recomendação de uma garota de eterno ranho, companheira de algum do meu tempo maravilha. Por entre puxadelas de monco, nariz emergindo do lenço, fungava, estou curada, já não volto; fui para lá desde bebé. Mercê deste bom exemplo, retive o nome do lugar e depois foi só procurar.
Na base afundada da aldeia, a ampla fachada do edifício transpõe. É uma construção maciça e de elegância sóbria, a traça obedecendo a um plano de simetrias e linhas rectas que definem ângulos de igual natureza. Conserva a cor branca debruada a pedra, janelas e portas altas, finas linhas verdes em passe partout, algumas varandas de ferro forjado a dar graça às portas-janela ou vestindo janelas curtas e ogivadas. Ignoro-lhe a história, mas não é difícil pensá-lo resguardo militar, talvez no tempo das invasões francesas (preciso investigar isto). No atravessar de corredores espaçosos há uns restos de sola de bota prepotente; na entrada principal, de frente para o terreiro e junto às lanternas, resquícios de aprumadas sentinelas; no silêncio dos salões, vozes de comando a trovejar. E, na saleta de pouca luz, onde agora reinam futebóis via satélite, houve recados e planos secretos de ataque, confidências de quem se sabe à beira de deixar cair o país, encarniçamentos pátrios de peito feito às balas. E medo. Muito medo a entranhar no meio metro de espessura das paredes. As altas patentes e os sem eira nem beira, que nisto de medos somos todos muito iguais, e se não volto. E se fico estropiado, cego, maneta. E as paredes hirtas e pálidas a guardá-los, dorme, amanhã pensas nisso, dorme enquanto a noite e os homens to permitem.
Mas, aparte o espírito militar que o habita sem dano, tudo hoje é diverso. Em cada quarto mora uma doença, um achaque, uma perversidade de que o corpo reclama e que atola a babar no salão de refeições, em júbilo de mandíbulas. Nas gordas tardes de digestão, os homens repassam o horário do futebol vezes incontáveis, dormem sestas, lêem o jornal.  As mulheres bebem cafés, flanam umas com as outras reiterando propósitos de dietas de açucares, gorduras  e farináceos – o que será que elas comem - e que colapsam diários, à vista de pratos infractores e sobremesas tentadoras. Um facto curioso é que o hotel serve essencialmente a terceira idade, mas ninguém reclama o prato de dieta. E é raro o hóspede que dispensa o doce. Doses substanciais de compota, tábua de queijos, doces de colher. Viver para comer não é vida. Mas talvez seja o prazer ainda possível. Porém, salvo uma ou outra excepção, a população oscila entre os 65/70. É só isto que resta, comer?! Ainda assim, discorro que talvez tenham explorado pouco e eu esteja rodeada de gente que não viveu tudo aquilo por que passou. Feliz ou infelizmente, a vida só tem perfume se macera. Parece ascético, mas é apenas verdade: é a sentir as coisas e as pessoas – tanta vez a sofrê-las - que as amamos. Não há outra maneira. Quem sabe, esta gente não chegou a conhecer o prazer de estar submerso numa fita de cinema, ali, à mercê dos actores e do enredo; de uma ida ao teatro a empolgar-nos a alma; do embalo celestial num concerto; de um passeio simples e sempre raro, mesmo em lugares habituais, é outra a brisa e a luz, nós mesmos somos outros. Quem sabe, pouco gostam de ler e já desapetecem viagens. E o computador, essa janela de mundo, se lhes cerra misterioso. Quem sabe, os ouvidos embotaram ao cantarolar do rio e o hotel vale apenas pelo conforto que oferece. Falta entusiasmo para andar os caminhos até às pontes sobre o Pantanha e o Mondego, o desvanecimento com a natureza que, qual canto de cisne, lenta se despede do verão em amarelos que avermelham, a cor a intensificar rente ao fim; a admiração pela grandeza das pedras e das árvores que resistem aos anos. 
Mas talvez nem lhes falte nada senão o Jackdaniels que, alquebrados, pedem depois do jantar, uma dificuldade a sentarem-se no banco do bar, as senhoras amparando com garra zelosa, olha se cais. E eu que resisto a pedir um chá. Ó vida!


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Casa Meal

Antigas casas senhoriais, um resquício de majestade na altura de portas e janelas bordejadas a granito, pé direito monumental e arruamentos  infestados de erva daninha, acicatam-me a curiosidade. Sinto esse chamado na Casa Meal onde nunca estive enquanto de portas abertas. Subo-lhe as ruas desertas. Paro no que foi jardim, bancos em semi círculo guardados por pinheiros que a velhice não bafejou. Sento-me intrusa na ponta da clareira e  em inesperada devassa íntima. Na minha frente, uma parede de arbustos que enredaram, descontrolados  de mão que os encaminhe. Aspiro este indómito vegetal, promiscuidade de seiva que inflama para ninguém. Foi seguramente um jardim de mulheres, pensado em socalcos como as vinhas do Douro, cada um bordado a seu ponto. E, lá no cimo, a ruína da casa a que se chega por caminho de madressilva perfumada que toda se derrama no muro, a alegria de alguém por perto a despontar nos salpicos brancos de flor,  bom dia.  Era de tarde, mas não contrariei. No sombreado daquele muro é, por certo, sempre manhã. A madressilva resistente. Falta-lhe poda, adubo, padece da ferrugem negra que lhe invade a finura das hastes, moléstia que pode mesmo ser manto de saudade. Mas floresce e perfuma. E no ar que quase ninguém respira – eu sou alguém –, neste Outono que desmerece, fica aquele odor a primavera húmida, uma certa promessa de vida a rebentar, que a casa já perdeu.
O edifício está ainda de pé, agora tapado de portas e janelas. Não entro, não espreito. Sei-lhe o grande salão vazio, o friso de madeira que a rodeia em toda a volta, o chão antigo em lavor de pedra desenhada, a lareira espaçosa onde mil árvores morreram de vontade, a consumir-se pelo fogo, imoladas em fulva alegria.  Penso no brasido calmo, quando o borralho apetece na sala aquecida. A essa hora de hóspedes nos quartos, as senhoras, sentadas em bancos baixos, a roda das saias a desmaiar no chão, chegavam à frente os seus insolúveis. Caladas. Mudas. Velhas. Tristes de tanta luta atraiçoada sem travão. Não sei quem foram. Ou se existiram. Para mim, estão sempre lá. Nas altas horas da noite, contemplando as melancólicas cinzas da vida; ou talvez a traição do fruto do seu ventre.
 A Casa Meal sofreu o mal de ser ruína extemporânea, foi morrendo por dentro, devagar e à vista de todos. Involuía em cada verão, cada vez mais silenciosa e desleixada. Até não abrir mais. E as senhoras, se as houve, num lar qualquer, uma casa de repouso incógnita, “no meu tempo”, “na nossa casa”, “as festas na casa”. E ninguém para ouvi-las. Ou talvez alguém que desconhece a casa, ou que apenas a viu sem lhe assentar a memória. Que pensa, já a velhota está  com a mesma cantilena.
Na entrada principal, o plátano centenário que a guarda já vestiu farda de época e o chão está pejado de folhas mortas que resmalham ao sopro do vento, quais pés que se arrastam em valsa sem arte. Sento-me no banco de granito e observo a rua arborizada que desemboca no largo da porta principal, ramos em grinalda para nada. Tão inerte e solitária como sempre a vi. Quanta vida se perde e esquece para sempre.

Desço devagar, aspirando a madressilva. Paro. Colho alguns ramos finos. Dentro de um copo com água, o seu estar de flor refresca-me os olhos.