sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Era uma vez, na  Zambujeira do Mar…
O pós 25 de Abril era-nos um mundo sem crispação, tolerante. Talvez por isso, no início acampávamos na praia, bem ao fundo, para não impedir os banhistas. Logo ali. Saíamos da tenda e podíamos dar uns passos e mergulhar. Na Zambujeira do Mar, as nossas tendas ao fim da praia num tête-à-tête perpétuo e na encosta de rocha um chuveiro disponível a ajustar clientes em seu sinuoso de aço, vinde a mim.
Mas também ali o princípio levou marca. As tendas ainda ensanduichadas nos sacos, resolvemos lanchar na praia, a descansar de tanto carrego. Estávamos nós a mastigar, olhando sem objectivo para um grupo de homens e rapazes que jogavam futebol, quando a bola se escapou para a água e um deles, calça arregaçada, a foi buscar; deu-lhe um  xuto pequeno e ela aportou de novo ao grupo. O homem ficou-me de frente, costas dadas ao mar. E começou a regressar enquanto os outros continuavam o jogo interrompido. De súbito, os joelhos dele dobraram como se a vida os tenha abandonado repentina e logo caiu de lado, na areia. Os meus amigos, primo e irmãos, imersos na futebolada, e ele caído, a atravessar-me a retina. Pensei, morreu. Pus-me a repuxar a roupa de quem me estava mais próximo e disse alto: aquele senhor sentiu-se mal. Depois os do jogo viram-no também. Chamaram-no. Primeiro um tom jocoso, depois um alerta de preocupação na voz e a seguir uma aflição que já não cabia no nome, que enchia a praia e lhe sugava o ar. Num ápice, o acaso debruçado de um médico entre os banhistas a sentenciar, está morto. Impressionámos.
Mas a Zambujeira do Mar foi também o lugar onde desistimos de acampar no areal. Foi ali que repeti uma noite de angústia ao rubro quando uma maré viva entrou pela madrugada e nos ficou a meio metro das tendas. Aflita, senti a invasão da água metro a metro, a cruzar e descruzar a palidez de dedos sem figura, num tormento de alma. Rezei bastante a pedir ajuda que travasse a maré. E acredito que se a minha mãe em algum eterno lugar – e se haja, estou segura que sim -, terá intercedido. Ou, tivemos imensa sorte. Antevia, porque as sentia a roçar-nos, que uma onda nos levantava as espias e nós à deriva, sem distinguir lado de terra ou mar. E acudiam-me as rochas tão no seu lugar, densidade inofensiva onde o meu irmão brincava solar. E imaginava-nos a embater-lhes na escuridão. Duras. A esfrangalhar-nos as carnes. Pensava que ninguém nadava além do Pedro e do nosso amigo. Se fôssemos atirados ao breu da noite, éramos todos míopes sem óculos. E pesou-me ter tanta gente à minha conta, sabendo em cada articulação do meu corpo, que nós todos contra a força invisível do mar éramos nada.

Na praia da Zambujeira vivemos a primeira experiência séria de campismo. E ali cimentámos amizades que inda perduram. Eu convidara uma amiga para se juntar a nós e ela apareceu por lá, dado que se atrasou a vir da Guarda – não admira, aquilo é mesmo longe - e quando apareceu em minha casa já eu tinha saído com os meus irmãos há um dia e tal. Tínhamo-nos conhecido em Évora, cidade de portas muitas. Pois eu e essa minha amiga sabíamos várias canções em francês e inglês e quando cantávamos ia de enfiada o que nos viesse à lembrança. Perto das nossas estavam uns estrangeiros em tendas baixinhas - todos homens – que julgávamos suecos. Os nossos rapazes a erguerem o seu muro de lamentações, ainda se fossem suecas, agora cinco ou seis suecos...ou a rirem um com o outro por terem ido ver um filme pornográfico que nem sei como passou na Zambujeira do Mar e meias frases entredentes, viste… e riam reticentes. Nós a insistir, contem lá, pá… bolas contem à gente. E eles um para o outro, contamos? – risos – Ná. É melhor não. E nós, contem só os bocadinhos engraçados, vocês riem tanto…Eles rindo, não podemos. O Pedro com seu sotaque espanhol, si, si, no podemos mismo. E estavam nisto, a dar cotoveladas um no outro feitos tontos. Até hoje sabemos que havia um cigarro em qualquer lado estranho e a que os garotos achavam imensa piada. Quem dormia com eles na tenda sabe que passaram uma noite na risota.

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