Era uma vez,
na Zambujeira do Mar…
O pós 25 de
Abril era-nos um mundo sem crispação, tolerante. Talvez por isso, no início
acampávamos na praia, bem ao fundo, para não impedir os banhistas. Logo ali.
Saíamos da tenda e podíamos dar uns passos e mergulhar. Na Zambujeira do Mar,
as nossas tendas ao fim da praia num tête-à-tête perpétuo e na encosta de rocha
um chuveiro disponível a ajustar clientes em seu sinuoso de aço, vinde a mim.
Mas também
ali o princípio levou marca. As tendas ainda ensanduichadas nos sacos,
resolvemos lanchar na praia, a descansar de tanto carrego. Estávamos nós a mastigar,
olhando sem objectivo para um grupo de homens e rapazes que jogavam futebol,
quando a bola se escapou para a água e um deles, calça arregaçada, a foi
buscar; deu-lhe um xuto pequeno e ela
aportou de novo ao grupo. O homem ficou-me de frente, costas dadas ao mar. E começou
a regressar enquanto os outros continuavam o jogo interrompido. De súbito, os
joelhos dele dobraram como se a vida os tenha abandonado repentina e logo caiu
de lado, na areia. Os meus amigos, primo e irmãos, imersos na futebolada, e ele
caído, a atravessar-me a retina. Pensei, morreu. Pus-me a repuxar a roupa de
quem me estava mais próximo e disse alto: aquele senhor sentiu-se mal. Depois
os do jogo viram-no também. Chamaram-no. Primeiro um tom jocoso, depois um
alerta de preocupação na voz e a seguir uma aflição que já não cabia no nome,
que enchia a praia e lhe sugava o ar. Num ápice, o acaso debruçado de um médico
entre os banhistas a sentenciar, está morto. Impressionámos.
Mas a Zambujeira
do Mar foi também o lugar onde desistimos de acampar no areal. Foi ali que repeti
uma noite de angústia ao rubro quando uma maré viva entrou pela madrugada e nos
ficou a meio metro das tendas. Aflita, senti a invasão da água metro a metro, a
cruzar e descruzar a palidez de dedos sem figura, num tormento de alma. Rezei
bastante a pedir ajuda que travasse a maré. E acredito que se a minha mãe em
algum eterno lugar – e se haja, estou segura que sim -, terá intercedido. Ou,
tivemos imensa sorte. Antevia, porque as sentia a roçar-nos, que uma onda nos
levantava as espias e nós à deriva, sem distinguir lado de terra ou mar. E
acudiam-me as rochas tão no seu lugar, densidade inofensiva onde o meu irmão
brincava solar. E imaginava-nos a embater-lhes na escuridão. Duras. A
esfrangalhar-nos as carnes. Pensava que ninguém nadava além do Pedro e do nosso
amigo. Se fôssemos atirados ao breu da noite, éramos todos míopes sem óculos. E
pesou-me ter tanta gente à minha conta, sabendo em cada articulação do meu
corpo, que nós todos contra a força invisível do mar éramos nada.
Na praia da
Zambujeira vivemos a primeira experiência séria de campismo. E ali cimentámos
amizades que inda perduram. Eu convidara uma amiga para se juntar a nós e ela
apareceu por lá, dado que se atrasou a vir da Guarda – não admira, aquilo é
mesmo longe - e quando apareceu em minha casa já eu tinha saído com os meus
irmãos há um dia e tal. Tínhamo-nos conhecido em Évora, cidade de portas
muitas. Pois eu e essa minha amiga sabíamos várias canções em francês e inglês
e quando cantávamos ia de enfiada o que nos viesse à lembrança. Perto das
nossas estavam uns estrangeiros em tendas baixinhas - todos homens – que
julgávamos suecos. Os nossos rapazes a erguerem o seu muro de lamentações,
ainda se fossem suecas, agora cinco ou seis suecos...ou a rirem um com o outro
por terem ido ver um filme pornográfico que nem sei como passou na Zambujeira
do Mar e meias frases entredentes, viste… e riam reticentes. Nós a insistir,
contem lá, pá… bolas contem à gente. E eles um para o outro, contamos? – risos
– Ná. É melhor não. E nós, contem só os bocadinhos engraçados, vocês riem
tanto…Eles rindo, não podemos. O Pedro com seu sotaque espanhol, si, si, no
podemos mismo. E estavam nisto, a dar cotoveladas um no outro feitos tontos.
Até hoje sabemos que havia um cigarro em qualquer lado estranho e a que os
garotos achavam imensa piada. Quem dormia com eles na tenda sabe que passaram
uma noite na risota.
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