sábado, 13 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

 Como é linear o pensamento aos vinte anos! Apesar dos benditos vizinhos afirmarem ter-nos ouvido cantar, desligámos do assunto. Não baixámos o tom de voz, nem alterámos um ínfimo no comportamento. Para nós, a tenda era casa, lar que nos isolava. Vivíamos imersos na nossa visão irreal da realidade, mofando de verdades taxativas e desligados da vida quotidiana, linha tão longínqua que parecia não nos pertencer. Detentores de um tempo novo, sentíamo-nos bandeirantes da vida e inaugurávamos um sagrado só nosso. Por isso, continuámos rindo e cantando ao serão – o candeeiro era só um, por norma na outra tenda.
Certa noite, resolvemos parar a cantoria e a risota e fomos todos fazer chichi. Saímos cuidadosos, a dar voz ao ditado popular, “onde mija um português…”, os pés a palpar terreno que no escuro tudo são buracos, armadilhas, vidros que lá não estão de dia, pontiagudos de farpas em pedaços de madeira que a noite, numa maldade inomeada, arrasta para a boca das tendas. O céu era de estrelas e escuridão sem luar, e ainda assim eu coibida, vamos ali para trás da tenda que tenho vergonha, pode vir alguém (como se à frente da tenda uma rua iluminada cheia de transeuntes). E lá seguimos a tropeçar nas espias laterais, a minha amiga a abreviar, fazemos já aqui. Eu, mão a orientar a mana mais nova, não, temos que ir ali para trás que é mais seguro.
Depois, atrás da tenda, foi aquela torneira aberta. Já aliviada e de pé, a compor-me, vejo cinco ou seis pirilampos a distância escassa. Basbaque de estátua na maravilha, tão engraçado, meia dúzia de pirilampos aqui na areia da praia. Ela, um tudo-nada perplexa, pois é…. A minha irmã, onde? Onde? E eu a apontá-los e a reparar melhor, desvanecida com a natureza das coisas, a cutucar a amiga, já viste que estão todos alinhados à mesma distância uns dos outros e quase em linha recta. E ela como quem desvenda o segredo de um axioma, aquilo, não são pirilampos. Eu intrigada, não são?! Então são o quê? Ela, não sei bem, mas não são pirilampos, e virando-se para o meu irmão, vai lá espreitar mais perto.
O mano deu uns passinhos curtos e virou-se em surdina risonha, são os alemães, estão deitados ao lado uns dos outros nos sacos cama a fumar, ia-me deixando cair em cima de um. E nós o uníssono aspirado de um AAaaaaah!, a imaginar-lhes o sorriso que não ouvimos. Os alemães são assim, todos polimento (aqueles eram). Invertemos a marcha ainda cheia de bocas escancaradas em ás de aspiração contida e, mal entrámos na tenda, demos corda ao riso. Tanto prurido e afinal, quase lhes encharcáramos os saco cama.
Também, quem é que os mandou dormir na rua e atrás da nossa tenda?! A liberdade também é isto.
Ora, certa manhã em que estávamos toalhando a curtir o sol depois de mais um banho – havia nos nossos rituais um continuum de banhos -, olho em frente e vejo o meu namoradinho, tenda ao ombro, cigarro à Belmondo, camisa aberta,  descendo para a praia com suas grandes pernas molaflex, na companhia de um ou dois amigos. Não gostei da ideia e, embora ele tivesse feito uma meia promessa, talvez eu apareça por lá, era-me inesperado. Mas vê-lo fazia-me bem a tudo. É assim quando se gosta, a outra pessoa infiltra-se cá dentro e, se a vemos, espalha-se em nós uma paz onde apetece permanecer ad eternum, o nosso querer, não vás embora, fica. E somos conscientes que, nela, respiramos um ar liberto, desejado.

No entanto, seria ali o nosso princípio de fim. O meu adolescente, “Inglês” para os amigos, era-o em tudo. Porém, fora do capítulo amoroso, a sua adolescência era-me difícil. Essas férias iriam reforçá-la. Contudo, tenho absoluta certeza de que nos gostávamos um imenso. E nem precisava a mãe, em vésperas do seu casamento, a foto do meu filho mais velho na mão, olhando-me séria, sabe que foi o grande amor do Luís Alberto. Por ele e pela música que preferia de paixão e não é a minha, sinto funda ternura grata. E tanto de bom que me trouxe, obliteradas as divergências incontornáveis e desejando que no seu coração tenha ocorrido fenómeno idêntico. Anos e anos em que não o lembrei. E depois, uma semana inteira a memória a trazer-mo, estupidamente, um dia atrás do outro. Presentificando, como em filme, os momentos bons. E depois, com igual presteza, esvaneceu.

Passou o tempo e soube que morreu. Inútil perguntar quando. Há  incompreensíveis na memória. Do coração. 

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