Como é linear o pensamento aos vinte
anos! Apesar dos benditos vizinhos afirmarem ter-nos ouvido cantar, desligámos
do assunto. Não baixámos o tom de voz, nem alterámos um ínfimo no
comportamento. Para nós, a tenda era casa, lar que nos isolava. Vivíamos
imersos na nossa visão irreal da realidade, mofando de verdades taxativas e
desligados da vida quotidiana, linha tão longínqua que parecia não nos
pertencer. Detentores de um tempo novo, sentíamo-nos bandeirantes da vida e
inaugurávamos um sagrado só nosso. Por isso, continuámos rindo e cantando ao
serão – o candeeiro era só um, por norma na outra tenda.
Certa noite, resolvemos parar a cantoria
e a risota e fomos todos fazer chichi. Saímos cuidadosos, a dar voz ao ditado
popular, “onde mija um português…”, os pés a palpar terreno que no escuro tudo
são buracos, armadilhas, vidros que lá não estão de dia, pontiagudos de farpas
em pedaços de madeira que a noite, numa maldade inomeada, arrasta para a boca
das tendas. O céu era de estrelas e escuridão sem luar, e ainda assim eu
coibida, vamos ali para trás da tenda que tenho vergonha, pode vir alguém (como
se à frente da tenda uma rua iluminada cheia de transeuntes). E lá seguimos a
tropeçar nas espias laterais, a minha amiga a abreviar, fazemos já aqui. Eu,
mão a orientar a mana mais nova, não, temos que ir ali para trás que é mais
seguro.
Depois, atrás da tenda, foi aquela
torneira aberta. Já aliviada e de pé, a compor-me, vejo cinco ou seis
pirilampos a distância escassa. Basbaque de estátua na maravilha, tão
engraçado, meia dúzia de pirilampos aqui na areia da praia. Ela, um tudo-nada
perplexa, pois é…. A minha irmã, onde? Onde? E eu a apontá-los e a reparar
melhor, desvanecida com a natureza das coisas, a cutucar a amiga, já viste que
estão todos alinhados à mesma distância uns dos outros e quase em linha recta.
E ela como quem desvenda o segredo de um axioma, aquilo, não são pirilampos. Eu
intrigada, não são?! Então são o quê? Ela, não sei bem, mas não são pirilampos,
e virando-se para o meu irmão, vai lá espreitar mais perto.
O mano deu uns passinhos curtos e
virou-se em surdina risonha, são os alemães, estão deitados ao lado uns dos
outros nos sacos cama a fumar, ia-me deixando cair em cima de um. E nós o
uníssono aspirado de um AAaaaaah!, a imaginar-lhes o sorriso que não ouvimos.
Os alemães são assim, todos polimento (aqueles eram). Invertemos a marcha ainda
cheia de bocas escancaradas em ás de aspiração contida e, mal entrámos na
tenda, demos corda ao riso. Tanto prurido e afinal, quase lhes encharcáramos os
saco cama.
Também, quem é que os mandou dormir na
rua e atrás da nossa tenda?! A liberdade também é isto.
Ora, certa manhã em que estávamos
toalhando a curtir o sol depois de mais um banho – havia nos nossos rituais um continuum de
banhos -, olho em frente e vejo o meu namoradinho, tenda ao ombro, cigarro à
Belmondo, camisa aberta, descendo para a praia com suas grandes pernas molaflex, na
companhia de um ou dois amigos. Não gostei da ideia e, embora ele tivesse feito
uma meia promessa, talvez eu apareça por lá, era-me inesperado. Mas vê-lo
fazia-me bem a tudo. É assim quando se gosta, a outra pessoa infiltra-se cá
dentro e, se a vemos, espalha-se em nós uma paz onde apetece permanecer ad
eternum, o nosso querer, não vás embora, fica. E somos conscientes que,
nela, respiramos um ar liberto, desejado.
No entanto, seria ali o nosso princípio
de fim. O meu adolescente, “Inglês” para os amigos, era-o em tudo. Porém, fora
do capítulo amoroso, a sua adolescência era-me difícil. Essas férias iriam
reforçá-la. Contudo, tenho absoluta certeza de que nos gostávamos um imenso. E
nem precisava a mãe, em vésperas do seu casamento, a foto do meu filho
mais velho na mão, olhando-me séria, sabe que foi o grande amor do Luís
Alberto. Por ele e pela música que preferia de paixão e não é a minha, sinto
funda ternura grata. E tanto de bom que me trouxe, obliteradas as divergências
incontornáveis e desejando que no seu coração tenha ocorrido fenómeno idêntico.
Anos e anos em que não o lembrei. E depois, uma semana inteira a memória a
trazer-mo, estupidamente, um dia atrás do outro. Presentificando, como em
filme, os momentos bons. E depois, com igual presteza, esvaneceu.
Passou o tempo e soube que morreu.
Inútil perguntar quando. Há incompreensíveis na memória. Do coração.
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