A
primeira amostra surgiu-nos duas ou três noites depois quando todos tinham ido
para o café e só eu e a Gina ficáramos na tenda com os meus irmãos mais novos –
que o resto do grupo não gostava de levar por lhes espantar a caça,
especialmente os rapazes cujo intuito nocturno era travar amizades com as
estrangeiras louras de long legs e receavam que elas os
julgassem seus filhos. Estávamos cantando – somos as duas afinadas – quando um
rapaz muito jovem, cabelo aos caracóis, afastou o pano da tenda, colocou um pé
dentro, agarrou-se ao varão da frente no que me pareceu um desequilíbrio
súbito e perguntou com um ar estranho, não é aqui o jardim? Nós, deitadas sobre
os nossos colchões e já prontas para dormir, sentámo-nos espantadas e meio a
rir. Ele continuava de pé, inteiro no nosso espaço, ainda com a mão no varão a
olhar muito vagamente não entendi para onde, murmurando, é, é, são aqui as
flores, aqui é o jardim. E nós para ele como se fora uma criança pequena, a
explicar-lhe, não, não, isto não é um jardim, é a nossa tenda; não vês onde
tens a mão, é o varão da tenda. E ele a insistir abanando os caracóis que por
acaso eram lindos e jogavam com a camisa branca meia aberta, a deixar ver pele
que gostava pouco de praia, é o jardim, sim, disseram-me que havia aqui um
jardim. E começou a sentar-se. Os meus irmãos calados.
A
dada altura aborreci-me de o tratar como bebé, achei que não tinha de aturar
bebedeiras de quem não era da família e repontei, tens de te ir embora, vai ter
com os teus amigos, eles devem estar lá fora. E ele já com uma mão no chão da
tenda, teimoso, não, eu fico aqui a cheirar as flores no jardim, gosto muito de
jardins. O curioso é que não tinha visto um bêbado como ele, parecia que não
nos via e as suas afirmações não eram resposta cabal às perguntas. Também não
emanava aquele cheiro a álcool que eu tão bem conhecia. Mais parecia que ia
desenvolvendo um raciocínio em paralelo e que vivia uma realidade também
paralela.
Entretanto,
chegou outro vizinho, e, com ar de big boss, foi buscá-lo dentro da
tenda. Desculpou-se e desculpou-o e prontamente o levou por um braço, afirmando
ir deitá-lo, tinha bebido demais. Para quem tanto insistira em permanecer no
jardim, o rapaz deixou-se guiar que nem cordeirinho. Não voltámos a vê-lo por
ali, mas no dia seguinte contámos a história da bebedeira aos nossos amigos D.
Juan, que logo empunharam espada e mosquete no intento de pedir explicações ao
outro grupo, por nos terem molestado o recreio. Mas nós dissuadimo-los. À luz
do dia, o episódio soava apenas engraçado.
O
outro facto curioso veio de uma rapariga loura que, na sua eterna mobilidade, o
outro grupo integrou a partir de uma dada altura. A garota não era bonita,
tinha cabelo oxigenado e um ar ligeiramente desleixado em demasia – sou
desleixada e sei do que falo. E o mais estranho é que a Gina olhava-a e, eu
conheço aquela cara, mas de onde.
Certo
dia, essa mesma também nos veio cair no colo. Melhor, uma noite; porque nunca
descobrimos onde é que eles viviam durante o dia, depois que acordavam. Nessa
noite, depois do jantar, veio até nós, sentou-se por ali e apresentou-se,
chamava-se Suzy com ipsílon (ela dizia ipson). Achei muito topete, mas não
disse nada. E em seguida começou a desfiar uma história de riqueza e fortuna
tão mirabolante na sua fraca figura que ninguém acreditou, nem eu, crédula de
pés juntos. E falava sem destino. Julgámo-la também bêbeda e comecei a
encontrar razão para o sono matinal dos nossos vizinhos. Entretanto, já ela ia
nas liberdades sexuais que os pais lhe permitiam, nas marcas de carro que tinha
na garagem, nos países que já visitara. Mas era notório o seu português
deficiente na oralidade. Que era universitária, filha única e tomava banho nua
com os pais (tinha as unhas todas sujas e roídas). Achei meio promíscuo e
fiz-lhe notar que isso a mim não me dava jeito, mas ela que sim, eram
liberdades que os três apreciavam bastante. Enquanto eu assim conversava com
ela e os outros se desentendiam daquele chorrilho a desviar os olhos tentando
não rir, reparei que a Gina a olhava fixamente, pensativa mesmo. E quando ela
ia a meio de uma festa dada nos seus salões, a Gina num grito contente: Maria
de Jesus!!! Eu sabia que te conhecia. Ela virou-se e disse baixinho, tu és de
Évora não és? Também me lembro de ti quando estive no Calvário. E desatou aos
abraços à Gina num pranto cheio de lágrimas e soluços.
Afinal a história era muito oposta. O Calvário era uma casa de correcção
(?) em Évora, onde se encontravam as menores por quem ninguém perguntava e tinham
sido apanhadas na prostituição. Disse-nos que tinha fugido do Calvário e que já
se arrependera mas que a sua vida ia ser sempre uma desgraça. E depois
desejou-nos boa noite e foi ter com os amigos. Não a voltámos a ver.
Compreensível.
Quase
no fim das nossas férias, os guardas frequentavam-nos os vizinhos com
assiduidade. Até que eles se fartaram e foram embora. Ou terão sido expulsos,
já não recordo. Tive saudades daquele sexo livre que adivinhávamos dentro dos
sacos cama ao relento, da francesinha tão bonita a chorar na carreira por um
português que ficou a dizer-lhe um adeus para nunca mais e a seguir rumou a
outras paragens, daqueles dois que descobrimos a beijar-se em cima de uma
árvore e nós cá em baixo à espera que caíssem de um fogo mais aceso. Dos nossos
amigos bonacheirões para os meus irmãos, tão, que é isso, vocês não têm idade
para comprar bilhete, fora daqui. E ficavam eles a olhar:)
As coisas que a vida ensina
a um grupo de campistas imberbes…
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