segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

A primeira amostra surgiu-nos duas ou três noites depois quando todos tinham ido para o café e só eu e a Gina ficáramos na tenda com os meus irmãos mais novos – que o resto do grupo não gostava de levar por lhes espantar a caça, especialmente os rapazes cujo intuito nocturno era travar amizades com as estrangeiras louras de long legs e receavam que elas os julgassem seus filhos. Estávamos cantando – somos as duas afinadas – quando um rapaz muito jovem, cabelo aos caracóis, afastou o pano da tenda, colocou um pé dentro, agarrou-se ao varão da frente no que me pareceu  um desequilíbrio súbito e perguntou com um ar estranho, não é aqui o jardim? Nós, deitadas sobre os nossos colchões e já prontas para dormir, sentámo-nos espantadas e meio a rir. Ele continuava de pé, inteiro no nosso espaço, ainda com a mão no varão a olhar muito vagamente não entendi para onde, murmurando, é, é, são aqui as flores, aqui é o jardim. E nós para ele como se fora uma criança pequena, a explicar-lhe, não, não, isto não é um jardim, é a nossa tenda; não vês onde tens a mão, é o varão da tenda. E ele a insistir abanando os caracóis que por acaso eram lindos e jogavam com a camisa branca meia aberta, a deixar ver pele que gostava pouco de praia, é o jardim, sim, disseram-me que havia aqui um jardim. E começou a sentar-se. Os meus irmãos calados.
A dada altura aborreci-me de o tratar como bebé, achei que não tinha de aturar bebedeiras de quem não era da família e repontei, tens de te ir embora, vai ter com os teus amigos, eles devem estar lá fora. E ele já com uma mão no chão da tenda, teimoso, não, eu fico aqui a cheirar as flores no jardim, gosto muito de jardins. O curioso é que não tinha visto um bêbado como ele, parecia que não nos via e as suas afirmações não eram resposta cabal às perguntas. Também não emanava aquele cheiro a álcool que eu tão bem conhecia. Mais parecia que ia desenvolvendo um raciocínio em paralelo e que vivia uma realidade também paralela.
Entretanto, chegou outro vizinho, e, com ar de big boss, foi buscá-lo dentro da tenda. Desculpou-se e desculpou-o e prontamente o levou por um braço, afirmando ir deitá-lo, tinha bebido demais. Para quem tanto insistira em permanecer no jardim, o rapaz deixou-se guiar que nem cordeirinho. Não voltámos a vê-lo por ali, mas no dia seguinte contámos a história da bebedeira aos nossos amigos D. Juan, que logo empunharam espada e mosquete no intento de pedir explicações ao outro grupo, por nos terem molestado o recreio. Mas nós dissuadimo-los. À luz do dia, o episódio soava apenas engraçado.
O outro facto curioso veio de uma rapariga loura que, na sua eterna mobilidade, o outro grupo integrou a partir de uma dada altura. A garota não era bonita, tinha cabelo oxigenado e um ar ligeiramente desleixado em demasia – sou desleixada e sei do que falo. E o mais estranho é que a Gina olhava-a e, eu conheço aquela cara, mas de onde.
Certo dia, essa mesma também nos veio cair no colo. Melhor, uma noite; porque nunca descobrimos onde é que eles viviam durante o dia, depois que acordavam. Nessa noite, depois do jantar, veio até nós, sentou-se por ali e apresentou-se, chamava-se Suzy com ipsílon (ela dizia ipson). Achei muito topete, mas não disse nada. E em seguida começou a desfiar uma história de riqueza e fortuna tão mirabolante na sua fraca figura que ninguém acreditou, nem eu, crédula de pés juntos. E falava sem destino. Julgámo-la também bêbeda e comecei a encontrar razão para o sono matinal dos nossos vizinhos. Entretanto, já ela ia nas liberdades sexuais que os pais lhe permitiam, nas marcas de carro que tinha na garagem, nos países que já visitara. Mas era notório o seu português deficiente na oralidade. Que era universitária, filha única e tomava banho nua com os pais (tinha as unhas todas sujas e roídas). Achei meio promíscuo e fiz-lhe notar que isso a mim não me dava jeito, mas ela que sim, eram liberdades que os três apreciavam bastante. Enquanto eu assim conversava com ela e os outros se desentendiam daquele chorrilho a desviar os olhos tentando não rir, reparei que a Gina a olhava fixamente, pensativa mesmo. E quando ela ia a meio de uma festa dada nos seus salões, a Gina num grito contente: Maria de Jesus!!! Eu sabia que te conhecia. Ela virou-se e disse baixinho, tu és de Évora não és? Também me lembro de ti quando estive no Calvário. E desatou aos abraços à Gina num pranto cheio de lágrimas e soluços.
                  Afinal a história era muito oposta. O Calvário era uma casa de correcção (?) em Évora, onde se encontravam as menores por quem ninguém perguntava e tinham sido apanhadas na prostituição. Disse-nos que tinha fugido do Calvário e que já se arrependera mas que a sua vida ia ser sempre uma desgraça. E depois desejou-nos boa noite e foi ter com os amigos. Não a voltámos a ver. Compreensível.
Quase no fim das nossas férias, os guardas frequentavam-nos os vizinhos com assiduidade. Até que eles se fartaram e foram embora. Ou terão sido expulsos, já não recordo. Tive saudades daquele sexo livre que adivinhávamos dentro dos sacos cama ao relento, da francesinha tão bonita a chorar na carreira por um português que ficou a dizer-lhe um adeus para nunca mais e a seguir rumou a outras paragens, daqueles dois que descobrimos a beijar-se em cima de uma árvore e nós cá em baixo à espera que caíssem de um fogo mais aceso. Dos nossos amigos bonacheirões para os meus irmãos, tão, que é isso, vocês não têm idade para comprar bilhete, fora daqui. E ficavam eles a olhar:)


As coisas que a vida ensina a um grupo de campistas imberbes…

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