domingo, 14 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Tróia do meu sonho, ninfa da minha realidade mais íntima….

No ano seguinte, decidimos não repetir a Zambujeira do Mar. Queríamos mudar de ares.
Primeiro, acampámos um fim-de-semana em Troia, a fim de lhe conhecermos pormenores. E, pura palermice, conhecemos mal. O nosso amigo ingressara como voluntário na tropa e não podia acompanhar-nos e montar as tendas. E eu levei o Pedro para o efeito. O meu primo encontrava-se em Portugal e presumo que nos tenha vindo visitar nos feriados e tratar de alguns documentos, quem sabe se mesmo os do serviço militar (nessa altura o Pedro já não nos acompanhava; a minha tia tinha, finalmente, a sua casa, e uma Blanca madrilena retinha-o lestamente). Sei que aproveitámos também uma ponte entre feriados, talvez no 10 de Junho. Éramos quatro, eu, a minha amiga, uma amiga dela e o Pedro. E acampámos logo ali na linha dos barcos, junto ao rio e perto do cais, onde o barulho e o gasóleo andam de mão dada. O local não foi o melhor, mas verificámos a existência de supermercado, farmácia, cafés. Concluímos ser bom lugar para campistas. E Troia campeava nas preferências. Nesse tempo, vivíamos ambas em Setúbal, ela hospedada numa moradia central, com vista para o Sado e eu no Bairro do Peixe Frito, em casa de um amigo do meu pai cuja família, ela mesma, seria digna de descrição. Por vezes, íamos à praia juntas, mas nesse ano e no seguinte a minha amiga bateu-me aos pontos no seu novo hábito de banhos ao entardecer. Na maioria do tempo, limitava-me a olhar Troia de longe, às vezes junto ao cais dos barcos, hábito em que persevero se tenho (ou crio) tempo livre em Setúbal.
Entretanto, ela descobrira um lugar onde podíamos acampar (havia um pinhal que servia de abrigo às tendas), com banho e água potável perto. Era tudo grátis e parecia-nos o melhor dos mundos. Ficava em Troia, numa enseada do rio, reentrância bojuda conhecida como “a caldeira” onde a água era mais quente que em qualquer lugar. Um paraíso. O nosso amigo continuava na tropa, mas de imediato nos garantiu os fins-de-semana e logo lhe aproveitámos os braços. Foram as nossas primeiras férias sem homens a tempo inteiro (ainda não conhecíamos o Jorge). Chegámos matinais, armámos as tendas debaixo dos pinheiros, fomos às compras e tudo foram maravilhas até ao entardecer.  
Porém, ao cair da tarde, uma nuvem de mosquitos, saída não se sabe de onde, estragou-nos o éden. É que não havia lugar do corpo onde não chegassem. A minha amiga e seu pendura, arrasados, resolveram ir para a água, onde a bicheza não ousaria. Mas a nuvem escurecia rente à água e foram obrigados a sair. O inveterado optimismo do nosso tropa, com a cabeça debaixo de água até se está bem - e instruindo o pessoal -;  vens à tona, respiras rápido e mergulhas de novo; afogas logo uma data deles. Ela indiferente a conselhos com piada incluída, uma coceira no corpo todo, a choramingar, ai a minha mãezinha que não sabe o que a filha está aqui a sofrer. Ou então, minha rica casinha sem um mosquito e eu aqui toda picada para onde quer que me vire. Não aguento quinze dias, vou-me embora antes, se calhar amanhã.
A sua imagem de mulher forte e segura, vergada por compacta nuvem de mosquitos, tinha alguma graça. Jamais a ouvira chamar pela mãe ou pela casa paterna e ainda hoje creio ter restringido tais lamentos a esse impasse de frenesim mosquiteiro em que a pele nos gritava por dedos que não tínhamos, inchando solene a cada picada. A léguas da deserção, nós quatro, também aflitos com a mosquitagem mas habituados ao bera da vida, só ríamos dos solilóquios deles.
Quando o agastamento estava no zénite – todos picados -, os mosquitos desapareceram.

Após o jantar, fizemos, enfim, a famosa fogueira que nos crepitava há anos no imaginário. Ela contente e já a esquecer propósitos de regresso, aquilo dos mosquitos é só uma hora, depois passa, digam lá se não é bom estarmos aqui à fogueira, a deitar achas no lume como nos filmes. - e mexia no fogo com um pauzito satisfeitíssima, a chegar-lhe mais uma pinha a que nós chamávamos cascabulho, afirmando num leve acento de prevaricação - é pá, gosto mesmo de fazer isto. E o nosso tropa ria bonacheirão, esta noite fazes chichi na cama. Ai deixa, vê lá se te viras para o outro lado que não quero acordar todo ensopadinho.

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