quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

Posto que me sinto incapaz de contar cada um dos nossos períodos de campismo ao longo dos nove anos – todos selvagens pois claro, que não havia carteira que chegasse à diária num parque – cinjo-me ao espírito que então nos possuía, justapondo alguns episódios que a memória, fiel depositária do passado, guardou em local seco e arejado.
Antes da série episódica, relembro que continuámos a manter o ponto de encontro: Setúbal; o hábito de eu e os meus irmãos mais novos ficarmos a guardar o montão de bagagem onde quer que fosse; o ritual propedêutico da família Pinto, em vésperas de partida: carregar a bagagem no carro de mão do meu pai, com excepção da malita ou saco de cada um com roupa e artigos de higiene. Abençoados vizinhos próximos da paragem que deixavam ficar no alpendre o nosso amontoado de fruta, batatas e outros legumes de cultivo, o candeeiro, a tenda os sacos camas e as mantas dos meus irmãozitos. Por norma, fazíamos três carros de mão a abarrotar, o vizinho alentejanamente sentado em seu alpendre, um olho expedito nas coisas, é pá…vocês levam muita coisa; atão a panela de pressão é para quê. Eu armada em mãe, para fazer a sopa. E ele, sim senhora, quer dizer que comem sopa na praia. ..e ficava a remoer a ideia enquanto com a lâmina do canivete de algibeira partia bocados a uma maçã e os levava à boca. Entretanto, nós girávamos de volta, eu um bocado intimidada com a confiança da lâmina a entrar-lhe boca dentro, imaginando sei lá que desgraças cheias de sangue e a roda do carro de mão numa chiadeira maluca, a minha irmã do meio, temos de pôr azeite nisto antes da próxima carrada.
Nessa noite, deitávamo-nos teoricamente mais cedo para madrugarmos no dia seguinte. Eu e a Maria Adélia chamávamos os manos mais novos e tratávamos que a casa ficasse limpa, (camas feitas, louça do pequeno almoço lavada, etc). Saíamos de casa ainda o dia deitado, a rua quieta, o luar de Agosto em absoluta beleza a pratear-nos as folhas das laranjeiras, todo derramado no espelho liso da água do tanque. As árvores acenavam-nos  num leve estremecer de folhas e ficavam a mirar-nos imponentes, esticando o tronco o mais que podiam, no despique de umas a outras, ainda os estou a ver, ainda os vejo, e agora já são só uma manchinha no caminho. Até que desaparecíamos na estrada e elas descansavam daquele bicos de pés, o vulto a relaxar apequenando, ufa, já me doíam as raízes. E nós como soldados imbuídos na missão, sobraçando saco ou mala, apressados para chegar ao alpendre do vizinho, sem outro medo que atrasarmo-nos e não termos tempo de carregar tudo até à paragem, dessa vez sem carro de mão. Seguíamos na carreira das seis e vinte e jamais alguém refilou com a hora, antes desejávamos de todo o coração que chegasse. Íamos contentes, contentes. 
Quando o autocarro parava, o revisor saía carrancudo de tanto volume, a perguntar enquanto abria o porta-bagagens entre as rodas do carro, mas vocês vão aonde, como se nos quisesse esconjurar para os confins da terra, ou, ainda melhor, pulverizar-nos. Enquanto isso, os meus irmãos mais novos, obedientes a ordens de idade e poiso, escapuliam para o interior e nós duas ficávamos a passar-lhe a bagagem. Depois, enquanto ele fechava portas, nós subíamos e só então respirávamos fundo e descansávamos, sentadinhas lado a lado, num autocarro semi vazio, a salientarmo-nos, vivazes, de rostos ensonados e corpos atirados ao assento ainda em restos de cama. E, depois de verificarmos se os manos estavam bem sentados - se não, fazíamo-los mudar de lugar – ficávamos à conversa nós duas, primeiro em dúvidas de certificação, fechaste a porta, viste as camas deles, trazes o bolo partido em fatias, puseste as maçãs junto com as cebolas e os alhos, tiraste algumas para a viagem. E depois, mergulhávamos no futuro, em antevisão, achas que a Isabel leva o quê, um doce ou um salgado, quantos minutos é que a gente espera por eles. E o entusiasmo encurtava-nos o caminho para um nada de tempo.

Nessa primeira manhã, o lanche metia sempre bolos que fazíamos para o efeito e o nosso encontro em Setúbal era de uma alegria tão exuberante que as pessoas paravam a olhar a trupe e o monte de bagagem em gestação acelerada, de cada vez que chegavam novos elementos. Nós inaugurávamos e abríamos a clareira aos vindouros, escolhendo lugar que não perturbasse passagem. E depois esperávamos ansiosamente, a pesquisar todas as janelas de autocarros que entravam na estação rodoviária, esperançados de que os nossos amigos nos fizessem um aceno. Porém, quase sempre eles surgiam inesperados e o reencontro ainda ficava mais bonito.

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