domingo, 21 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

A treze de Julho terminava a escola e o tempo voraz arrastava-nos para outro mundo. Esquecíamos a mala num canto de casa, a professora evaporava e começávamos três meses de diferença. Fora do parentesco escolar e destituídos do seu istmo relacional, devínhamos estranhos uns aos outros. Se o acaso nos cruzava na mercearia, dávamos tímidos adeuses ou aproximávamo-nos a medo, as mães a empurrar-nos, vai brincar, deixa-me as saias. E o corpo reticente, dedos fincados no bordo das tulhas, o empregado de olhos na alfarroba partida, mãozinhas à frente, mãozinhas à frente.
Férias era o tempo em que as crianças, espevitadas pela pressa dos adultos, cresciam sem brandura  e amanheciam cedo. Nessas madrugadas de Verão, enfiávamos a roupa no escuro atrapalhando botões estremunhados, engolíamos à pressa uns goles de “café-de-pé”, dentávamos uma côdea dura e saíamos para o mundo a clarear. Estar de férias era ter lugar de destino  na prateleira da vida:  uns frequentavam a escola paga da menina Ermelinda que os entretinha o inteiro do dia por um preço irrisório,  enquanto os pais trabalhavam; outros seguiam para casa de familiares, avós, tias, parentes, de onde regressavam à tardinha quando já havia voz em casa; uma percentagem bastante razoável de garotas, era cativa do género, tomava conta de irmãos mais novos, lavava, varria e limpava, o mundo familiar a impor-lhe alíneas exigentes e a fazer força para ignorar-lhes a idade, as mãos pequenas e a vontade de brincar. Mas eu, Lídia e Luís jogámos noutros campos. Enquanto pais e irmãos trabalhavam, os meus amigos iam ficar sozinhos em casa. Ela  hasteava bem alto a bandeira de fiscalização de uma tia,  antevendo liberdades irrestritas, a tia tinha seis filhos e tanto afazer que só daria por ela se a casa ardesse e notasse os rolos de fumo;  Luís ficava entregue à vizinha do lado, uma velha encardida e mal cheirosa que brigava com a mãe dele semana sim semana não e nem de si tomava conta. Em contrapartida, minha mãe fizera orelhas moucas aos rogos de me deixar em situação idêntica. Portanto, o destino apresentava-se nebuloso. Estava-me destinada a casa da madrinha-velha que residia numa aldeia próxima e por lá me quedaria até terminar a contrata de meus pais. Madrinha Carmelita via muito mal apesar dos óculos redondos de tartaruga que lhe aumentavam os olhos e as rugas. Se a fixávamos, parecia uma égua envelhecida, olhos muito ampliados e pestanas de metro. E de tal modo o seu rosto assustava os bebés e as crianças pequenas que, em vez do papão ou do velho do saco, algumas mães ameaçavam maldosas, olha que chamo a Carmelita. A velha tinha uma expressão séria e eu impressionava na bengala trôpega e nas escaras semeadas pelo rosto, braços e pernas, mas não a temia. Quando conversámos sobre as novidades para férias o Luís disse meio pensativo, essa velha mija de pé, nunca viste? E eu nunca vira. Nem experimentara. Portanto resolvi-me.  Molhei combinação e cuecas, as tristes pernas a escorrer de alto a baixo. Com medo e vergonha de minha mãe, vi-me forçada a aguentar o desconforto até secar. Mas quando contei a peça, o Luís sabichão, parva, não vês que ela não usa cuecas e abre as pernas. E a Lídia a ajudar, as velhas fazem quase todas assim, és uma atada não vês nada, a gente sabe porque as espreita. Comecei a entender que pensávamos diferente porque vivíamos diferente as mesmas coisas, eu não detinha qualquer interesse por velhas a fazer chichi - termo que soltava a ironia pesada dos meus amigos - e achava falta de educação ir espreitá-las. Mas reconheci que sabia muito menos que eles.
Mau grado a despedida difícil de minha mãe, o abandono dos  amigos, a eczema de outro lugar, o receio de viver com uma pessoa de que conhecia bocadinhos  em hora de chá com fatias douradas, as nossas primeiras férias grandes foram surpreendentes.

Ao comprimento dos dias de calor, vinha-me a imagem de minha mãe e julgo que foi nessa altura que aprendi a tristeza doce da saudade solúvel. Sem inveja, imaginava os meus dois amigos, cada um em sua casa a satisfazer apetites  de liberdade solitária. Entretanto, pouco a pouco, fui descobrindo madrinha Carmelita. E a velhota  era bem mais do que “a velha que mija de pé”. 

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