No dia em que a madrinha velha veio
buscar-me, minha mãe lavou-me em pormenor a preocupar-se com orelhas e pescoço,
cortou-me as unhas, vestiu-me de domingo, abriu a risca ao meio com o pente,
está quietinha senão fica a marrafa torta. Por fim, andou connosco até à
paragem da carreira. Dessa vez não embarquei sem lágrimas e solucei parte da
viagem. Enquanto isso, a velha coalhou a meu lado, o talego com os meus
pertences adormecido no colo. Nem um reparo à minha triste figura, apenas a mão
dela a procurar a minha no intervalo dos nossos corpos e a deixá-la por lá. Por
via disso e de ser criança, os soluços foram espaçando e, cansada, recostei-me
no assento a despedir o desgosto.
Aos sete anos ainda não o sabia mas já me
despontava a neutralidade a ambientes físicos e pouca diferença encontrei na
pobreza da aldeia vizinha. Quando descemos da camioneta da carreira, a cal
encandeava na magreza escanzelada das casas baixas com portas e janelicos
estreitos e desvidrados, a madeira comida de sol a descarnar aqui e ali. O
povoado orientava-se pelo delgado de ruas opostas que desaguavam no largo da
igreja, aterro de pedrisco fino. Era ali que as crianças esfolavam
joelhos e partiam cabeças umas às outras, se uma pedra esquinada lhes assentava
os agudos nas zangas de vale tudo. Ao lado de cada porta, em desafio
de latas ferrugentas e penicos velhos, desabrochavam flores impávidas: rosas
espinhudas e raquíticas em anseios de largueza e fundura; cravos pegados por
poda e roubados nos jardins – diz-se que flores roubadas pegam
melhor - por onde passava a cobiça das mulheres; margaridas que pegavam de
estaca e quase todos os portais exibiam; dálias vistosas e dessoradas, sem um
pingo de aroma; gladíolos emproados e militares; farfalhudas papoilas de
jardim. E por ali passeavam a enganar a fome gatos e cães vadios, crianças
sujas e ranhosas, o pedrisco da igreja a treinar pontarias na vadiagem animal.
Às portas, sentados num moxo, alguns velhos ocupavam as mãos e
faziam-se úteis. Entrançavam as réstias de cebola, faziam os molhos de alhos,
atavam o poejo e o orégão em ramos, arranjavam e salgavam os pimentos. E a
arritmia dos dedos anquilosados remoía a saudade do tempo em que o corpo lhes
era leve. Recordavam horas sem canseira, descalços e a palmilhar quilómetros em
poupança de solas, os sapatos atados um ao outro pelos atacadores e pendurados
ao pescoço, para calçá-los perto do recinto e poderem dançar com
qualquer rapariga num baile de domingo. E depois desembocavam directos no local
de trabalho porque enregavam ao romper do sol. Quase
todos tinham por perto uma criança de mau andar, sentada num ameaço de manta suja
ou agarrada às suas pernas, a cara pegajosa da chucha, um trapo a pingar cuspo,
envolvendo um bocado de pão molhado em açúcar e atado em forma de bola com
linha de coser. À conta desta estratégia, entretenimento de choro e fome, muita
gente ficou com a dentição estragada. Mas tudo isto era vulgar e repetido,
também acontecia na minha aldeia e aos sete anos o mundo
era como era e não pensava que pudesse ser diferente.
As surpresas vieram da madrinha Carmelita.
A casa da velhota era um pouco maior que a minha, facto que não entendi, ela
vivia sozinha, para que queria uma casa com três divisões? Pasmei para os naperons, a claridade das janelas em todas as divisões e a madeira corrida nos quartos, onde apetecia andar descalça. Mas o que mais gostei foi saber que tinha um
quarto só para mim. Entrámos e reparei nos armários e outra mobília que
nunca tinha visto, e numa cama com almofadas e colcha. A velha sorriu ao meu ar
agradado e deixou-me sozinha. Para tomares confiança, disse ela a fechar a
porta. Estendi-me na cama que senti macia por comparação com a minha onde
as camisas de milho resmungavam folhudas revoltas às minhas piruetas nocturnas
e me castigavam o corpo a espetar-me carolos nas costelas, eu queixinhas, mãe
está aqui um pau; e ela acudia, pegava-me ao colo e depositava-me aos pés da cama.
Depois desmanchava-a parcialmente e com mãos de mãe encontrava o carolo malvado
que retirava antes de voltar a deitar-me. Mexi-me de novo e nada de resmalho de
folhas. Antes uma espécie de cálida maciez. Levantei-me e espreitei sob os lençóis, no lugar onde minha mãe punha a mão a mexer as palhas, mas o colchão
estava fechado, cosido com linha a condizer. Pensei que talvez gostasse de
viver ali uns tempos e deixei-me cair sobre a cama a tentar não amarrotar demasiado a colcha, pensando como gostaria de contar a Lídia daquele colchão e da casa
que me parecia tão grande.
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