terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O Tempo de Ir à Escola"

No dia em que a madrinha velha veio buscar-me, minha mãe lavou-me em pormenor a preocupar-se com orelhas e pescoço, cortou-me as unhas, vestiu-me de domingo, abriu a risca ao meio com o pente, está quietinha senão fica a marrafa torta. Por fim, andou connosco até à paragem da carreira. Dessa vez não embarquei sem lágrimas e solucei parte da viagem. Enquanto isso, a velha coalhou a meu lado, o talego com os meus pertences adormecido no colo. Nem um reparo à minha triste figura, apenas a mão dela a procurar a minha no intervalo dos nossos corpos e a deixá-la por lá. Por via disso e de ser criança, os soluços foram espaçando e, cansada, recostei-me no assento a despedir o desgosto.
Aos sete anos ainda não o sabia mas já me despontava a neutralidade a ambientes físicos e pouca diferença encontrei na pobreza da aldeia vizinha. Quando descemos da camioneta da carreira, a cal encandeava na magreza escanzelada das casas baixas com portas e janelicos estreitos e desvidrados, a madeira comida de sol a descarnar aqui e ali. O povoado orientava-se pelo delgado de ruas opostas que desaguavam no largo da igreja, aterro de pedrisco fino.  Era ali que as crianças esfolavam joelhos e partiam cabeças umas às outras, se uma pedra esquinada lhes assentava os agudos nas zangas de vale tudo.  Ao lado de cada porta, em desafio de latas ferrugentas e penicos velhos, desabrochavam flores impávidas: rosas espinhudas e raquíticas em anseios de largueza e fundura; cravos pegados por poda  e roubados nos jardins – diz-se que flores roubadas pegam melhor - por onde passava a cobiça das mulheres; margaridas que pegavam de estaca e quase todos os portais exibiam; dálias vistosas e dessoradas, sem um pingo de aroma; gladíolos emproados e militares; farfalhudas papoilas de jardim. E por ali passeavam a enganar a fome gatos e cães vadios, crianças sujas e ranhosas, o pedrisco da igreja a treinar pontarias na vadiagem animal. Às portas,  sentados num moxo, alguns velhos ocupavam as mãos e faziam-se úteis. Entrançavam as réstias de cebola, faziam os molhos de alhos, atavam o poejo e o orégão em ramos, arranjavam e salgavam os pimentos. E a arritmia dos dedos anquilosados remoía a saudade do tempo em que o corpo lhes era leve. Recordavam horas sem canseira, descalços e a palmilhar quilómetros em poupança de solas, os sapatos atados um ao outro pelos atacadores e pendurados ao pescoço,  para calçá-los perto do recinto e poderem dançar com qualquer rapariga num baile de domingo. E depois desembocavam directos no local de  trabalho porque enregavam ao romper do sol.  Quase todos tinham por perto uma criança de mau andar, sentada num ameaço de manta suja ou agarrada às suas pernas, a cara pegajosa da chucha, um trapo a pingar cuspo, envolvendo um bocado de pão molhado em açúcar e atado em forma de bola com linha de coser. À conta desta estratégia, entretenimento de choro e fome, muita gente ficou com a dentição estragada. Mas tudo isto era vulgar e repetido, também acontecia na minha aldeia e aos sete anos o mundo era como era e não pensava que pudesse ser diferente.  
As surpresas vieram da madrinha Carmelita. A casa da velhota era um pouco maior que a minha, facto que não entendi, ela vivia sozinha, para que queria uma casa com três divisões? Pasmei para os naperons, a claridade das janelas em todas as divisões e a madeira corrida nos quartos, onde apetecia andar descalça. Mas o que mais gostei foi saber que tinha um quarto só para mim. Entrámos e reparei nos armários e outra mobília que nunca tinha visto, e numa cama com almofadas e colcha. A velha sorriu ao meu ar agradado e deixou-me sozinha. Para tomares confiança, disse ela a fechar a porta. Estendi-me na cama que senti macia por comparação com a minha onde as camisas de milho resmungavam folhudas revoltas às minhas piruetas nocturnas e me castigavam o corpo a espetar-me carolos nas costelas, eu queixinhas, mãe está aqui um pau; e ela acudia, pegava-me ao colo e depositava-me aos pés da cama. Depois desmanchava-a parcialmente e com mãos de mãe encontrava o carolo malvado que retirava antes de voltar a deitar-me. Mexi-me de novo e nada de resmalho de folhas. Antes uma espécie de cálida maciez. Levantei-me e espreitei sob os lençóis, no lugar onde minha mãe punha a mão a mexer as palhas, mas o colchão estava fechado, cosido com linha a condizer. Pensei que talvez gostasse de viver ali uns tempos e deixei-me cair sobre a cama a tentar não amarrotar demasiado a colcha, pensando como gostaria de contar a Lídia daquele colchão e da casa que me parecia tão grande.

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