segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"No Tempo da Escola"

Depois de uma barrela energética e mais branda que as maternas, madrinha Carmelita passou à satisfação da minha vaidade: enfiou-me o vestidinho de missas e passeios, uma nuvem franzida de nylon branco semeado de raminhos em rosa vivo; sobre ele ajeitou a neve de um casaco, terno tricot de minha mãe em ponto bago de arroz, que cruzava na frente e rematava nas laterais com alvos laços de fita. E era ver a atrapalhação da velhota, dedos grossos a unir as fitas para fazer a aselha, os olhos franzindo esforços por detrás dos óculos, eu já não tenho vista para isto, estou velha para estas coisas, a tua mãe tem cada ideia, para que são dois laços. E eu pavão. A impar. Depois mandou-me calçar os soquetes brancos e os sapatos de verniz enquanto ela se vestia. Fiquei na cozinha e calcei-me, um contentamento vibrante e desmedido no brilho dos sapatos, o orgulho suspenso da fivela que apertava e tudo. Julgava eu que estava despachada. Mas quando Carmelita se aprontou fiquei boquiaberta. Apareceu tão janota como nunca a tinha visto. O vestido preto assentava-lhe no corpo qual pele e ela tinha posto por cima uma gola clara de renda e na cabeça um chapeuzinho preto. Usava uma bengalinha fina na mão direita, provavelmente a do marido, e calçara sapatos pretos de presilha com um bocadinho de salto. Fiquei tão contente que a abracei e disse, vamos embora. Desejava sair de mão dada com ela e fazer inveja à aldeia inteira, mostrar a toda a gente como estava bonita e bem arranjada, fazer notar a sorte que eu tinha em passar ali as férias. Mas a velhota pegou-me na mão, sentou-me num banquinho baixo e sentenciou, vou-te fazer uns canudos que o cabelo escorrido não tem gracinha nenhuma. Exultei. Tanto os pedira em casa e minha mãe sem me fazer caso, o teu cabelo é muito liso, não dá para canudos. Portanto, ia a um casamento pela primeira vez, via uma noiva e testava-lhe a beleza, e levava canudos. Não podia haver melhor notícia. Enquanto o garfo aquecia no fogão a petróleo imaginei-me a ficar igual a  Lídia. Talvez mesmo mais bonita. Ansiava ver-me no espelho, a cabeça aos rolinhos certos.  
Breve ilusão. A madrinha bem aqueceu o garfo, bem molhou o cabelo com água e açúcar, bem porfiou. No cabelo doce e empastado nem um arzinho de ondulação. E o espelho devolveu-me uma imagem tão reles que quase desatei a chorar. Então, a madrinha tapou as cerimónias com o avental, entornou para uma bacia a água quente da panela e lavou-me de novo a cabeça mastigando ao ritmo das mãos, ó mas esta menina, que cabelo que ela tem que não dá mão nem por nada, se eu soubesse disto nem tinha experimentado a calda de açúcar. E eu de olhos bem fechados, cabeça mergulhada na bacia, a tentar não pingar o vestido das maravilhas e desditando-me, nunca, nunca vou ser nem um bocadinho parecida com a Lídia.

Resignada a levar-me de cabelo liso, a madrinha retirou-lhe a água maior limpando-me a cabeça, o meu rosto contra a surpresa grata da sua barriga lustrosa e aveludada,  penteou-me, agarrou numa malinha parecida com os meus sapatos e saímos. À luz do dia, esqueci as desgraças capilares e voltei à felicidade antiga de roupa e sapatos novos, a achar-me linda nos paramentos de festa. Mas no fim da rua já eu coxeava, os sapatos a apertarem-me os pés. Pensei em Lídia, ela já os teria atirado para a valeta, mas estava tão orgulhosa deles, queria chegar calçada junto da noiva, o que podia fazer?! Olhei para a madrinha que não se apresentava em melhor estado, mas era mais expedita e se virou para mim numa decisão, vamos mas é chamar o táxi, estamos as duas coxas. E era ver-nos à porta da mercearia todas empapoiladas e rodeadas de mirones, à espera do espada do senhor Laurentino, pessoa importante do meu mundo, sempre de camisa branca sob o casaco e a gravata, um bigodinho fino a branquejar sobre o lábio superior e que me tratava como nenhum homem antes, faça favor de subir, menina. E depois fechava-me a porta com cuidado a recomendar – como se precisasse – ponha os pézinhos em baixo para não sujar os estofos. Um céu aberto o táxi do Laurentino. E eu lá dentro só a cabecinha à vista, um espação entre mim e a madrinha que descansava as pernas e dizia apoiada à bengalinha, senhor Laurentino se calhar é melhor levar a gente já para a igreja. E ele em manobras habituadas e meio carinhosas, o amor pela máquina a sobressair-lhe do corpo, respondendo num arrojo falsamente servil, a senhora manda, D. Carmelita. E, cheio de importância, ligou-nos o rádio.  

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