quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

Hoje há livros que explicam tudo, verdades escritas e  ilustradas com desenhos. E há conversas entre pais e filhos. Mas nós só nos tínhamos uns aos outros e contávamos cada descoberta na convicção de verdade intransponível. O mundo adulto era-nos misterioso quanto baste. E escutar uma conversa de pouco nos servia, estranhávamos metade do conteúdo e    não podíamos dar um pio, pedir uma explicação, sem um tabefe bem assente ou a expulsão imediata. Assim, o mais frequente era deixarmos os adultos no seu planeta e rumarmos ao nosso que resplandecia de descobertas pequenas e lugares ignotos de braços abertos. Era neste mundo de ignorância e imaginação partilhadas que o nosso conhecimento crescia. Nesse tempo, intrigava-me sobremaneira o facto de haver uma cegonha que vinha de Paris – já a observara na farmácia - de fralda no bico a carregar um bebé em pêlo. O farmacêutico tinha-me garantido que Paris era muito longe e pouco ligou aos meus mas. Além disso, bem notei a falta de gosto de minha mãe que parecia ter zanga à cidade e à cegonha, em vez de ficar-lhe grata por não ter deixado cair a minha irmã no caminho, é que bastaria abrir o bico e lá ia ela. Por outro lado, eu que tanto gostava de as observar, não descortinara um bebé no bico de nenhuma. Um dia tinha abordado o Luís mas ele riu e disse, os bebés não vêm de Paris. É claro que não acreditei e lhe mostrei que o farmacêutico sabia muito mais que ele, tinha bata branca vestida e tudo, usava óculos e era um bom homem, ria-se para nós. O Luís virou-me uns olhos sérios e abanou a cabeça, não vêm de Paris, se não acreditas, pergunta à Lídia. Pensei que havia coisas mais importantes que as cegonhas e os bebés, mas na primeira oportunidade a sós perguntei mesmo. Ela parou, olhou-me meia baralhada, cerrou os lábios e franziu a testa num esforço de pensamento e respondeu, eu acho que estão dentro das mães mas não sei como é que é. Depois encolheu os ombros a terminar o assunto e ignorou o meu desconcerto cheio de interrogações, propondo antes uma brincadeira com as bonecas. E em casa, minha mãe foi lacónica e não confirmou nem desmentiu as teorias deles. Desisti de perguntar sobre o assunto.
 Mas a vida proporciona as ocasiões. Uma manhã, Lídia não me apareceu à porta e depois de muito olhar o caminho resolvi-me a ir para a escola, o Luís já ao portão e a chamar-me, em claro sinal de atraso. Julgámos os dois que estivesse doente e corremos até à escola, os lápis a sacolejarem dentro das malas. Apareceu depois da copia e do ditado, esguedelhada e sem bata. Dirigiu-se à secretária, murmurou alguma coisa à professora e veio sentar-se a meu lado sem um olhar, muito concentrada a tirar as coisas do saco, ignorando a minha cusca inquietação. Ao recreio, puxou-me de parte, pegou-me pela mão e arrastou-me até ao canto do pátio. Depois, com olhos graves, fez-me jurar que não contaria a ninguém o que ia ouvir. Pensei que sendo tão novinha não podia ter grandes segredos e, depois de instruída no preceito,  jurei com toda a solenidade. Lídia aproximou a boca do meu ouvido e bichanou, a minha irmã fugiu. E à minha pergunta desajeitada, fugiu como?, respondeu num encolher de ombros, não sei, foi esta noite,  fugiu com o namorado e agora a minha mãe está para lá a chorar. E encerrou o assunto com um, chiu, ela não quer que eu conte!, o indicador vertical a meio da boca e  a apanhar o nariz.

 Aquela novidade de namorados fugitivos e que eu imaginava bem longe, cansados e com fome, acompanhou-me o dia inteiro sem atinar com o motivo da fuga.  Por outro lado, sentia o peso da promessa feita e nem a minha mãe podia perguntar.  Mas na manhã seguinte entrevi um fio de claridade quando o Luís se virou para ela a rir, tão, agora  já dormes mais à larga...Lídia pôs a sua cara briguenta e perguntou quem lhe tinha contado e ele, sei lá, a minha mãe, os meus irmãos, ou foi na taberna, toda a gente sabe. E acrescentou mais baixo, a debruçar-se sobre ela, dizem que a tua irmã está de barriga. Eu não estava  a entender a conversa e comentei livre de promessas, eles já devem ir muito longe mesmo, se calhar nunca mais os vemos. E o garoto a rir-se, ui, nem sabes a lonjura, foram até à casa da mãe dele que é aquela ali no cabeço, ao pé da linha do comboio. Sem tempo para me refazer do espanto, reparei que Lídia atirava o saco da escola para a valeta e, com ar de gata assanhada, se agarrava aos braços do  Luís e desatava a pontapeá-lo nas canelas, gritando e chorando de raiva, quem é que tá de barriga, vá diz lá outra vez que eu agarro já numa pedra e atiro-ta à cabeça. Dizes outra vez que a minha irmã tá de barriga e nunca mais te falo. Mais alto e forte que ela o garoto desprendeu-se, afastou-a de si queixando-se das nódoas negras nas pernas e acrescentou, tá bem, não digo mais nada, não precisavas era de me bater. 

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