Hoje há livros que explicam tudo, verdades escritas e ilustradas com desenhos. E há conversas entre
pais e filhos. Mas nós só nos tínhamos uns aos outros e contávamos cada
descoberta na convicção de verdade intransponível. O mundo adulto era-nos
misterioso quanto baste. E escutar uma conversa de pouco nos servia, estranhávamos metade do
conteúdo e não
podíamos dar um pio, pedir uma explicação, sem um tabefe bem assente ou a
expulsão imediata. Assim, o mais frequente era deixarmos os adultos no seu
planeta e rumarmos ao nosso que resplandecia de descobertas pequenas e lugares
ignotos de braços abertos. Era neste mundo de ignorância e imaginação
partilhadas que o nosso conhecimento crescia. Nesse tempo, intrigava-me
sobremaneira o facto de haver uma cegonha que vinha de Paris – já a observara
na farmácia - de fralda no bico a carregar um bebé em pêlo. O farmacêutico
tinha-me garantido que Paris era muito longe e pouco ligou aos meus mas. Além
disso, bem notei a falta de gosto de minha mãe que parecia ter zanga à cidade e à cegonha, em vez de ficar-lhe grata por não ter deixado cair a minha irmã no
caminho, é que bastaria abrir o bico e lá ia ela. Por outro lado, eu que tanto
gostava de as observar, não descortinara um bebé no bico de nenhuma. Um dia tinha
abordado o Luís mas ele riu e disse, os bebés não vêm de Paris. É claro que não
acreditei e lhe mostrei que o farmacêutico sabia muito mais que ele, tinha bata
branca vestida e tudo, usava óculos e era um bom homem, ria-se para nós. O Luís
virou-me uns olhos sérios e abanou a cabeça, não vêm de Paris, se não
acreditas, pergunta à Lídia. Pensei que havia coisas mais importantes que as
cegonhas e os bebés, mas na primeira oportunidade a sós perguntei mesmo. Ela parou,
olhou-me meia baralhada, cerrou os lábios e franziu a testa num esforço de
pensamento e respondeu, eu acho que estão dentro das mães mas não sei como é
que é. Depois encolheu os ombros a terminar o assunto
e ignorou o meu desconcerto cheio de interrogações, propondo antes uma
brincadeira com as bonecas. E em casa, minha mãe foi lacónica e não confirmou
nem desmentiu as teorias deles. Desisti de perguntar sobre o assunto.
Mas a vida proporciona as ocasiões. Uma
manhã, Lídia não me apareceu à porta e depois de muito olhar o caminho resolvi-me
a ir para a escola, o Luís já ao portão e a chamar-me, em claro sinal de atraso.
Julgámos os dois que estivesse doente e corremos até à escola, os lápis a
sacolejarem dentro das malas. Apareceu depois da copia e do ditado, esguedelhada e sem
bata. Dirigiu-se à secretária, murmurou alguma
coisa à professora e veio sentar-se a meu lado sem um olhar, muito concentrada
a tirar as coisas do saco, ignorando a minha cusca inquietação. Ao recreio, puxou-me de parte, pegou-me pela mão e arrastou-me até ao canto do pátio.
Depois, com olhos graves, fez-me jurar que não contaria a ninguém o que ia
ouvir. Pensei que sendo tão novinha não podia ter grandes segredos e, depois de
instruída no preceito, jurei com toda a solenidade. Lídia aproximou
a boca do meu ouvido e bichanou, a minha irmã fugiu. E à minha pergunta
desajeitada, fugiu como?, respondeu num encolher de ombros, não sei, foi esta
noite, fugiu com o namorado e agora a
minha mãe está para lá a chorar. E encerrou o assunto com um, chiu, ela não quer
que eu conte!, o indicador vertical a meio da boca e a apanhar o nariz.
Aquela novidade de namorados fugitivos
e que eu imaginava bem longe, cansados e com fome, acompanhou-me o dia inteiro
sem atinar com o motivo da fuga. Por
outro lado, sentia o peso da promessa feita e nem a minha mãe podia
perguntar. Mas na manhã seguinte entrevi um fio
de claridade quando o Luís se virou para ela a rir, tão, agora já dormes mais à larga...Lídia pôs a sua cara
briguenta e perguntou quem lhe tinha contado e ele, sei lá, a minha mãe, os
meus irmãos, ou foi na taberna, toda a gente sabe. E acrescentou mais baixo, a
debruçar-se sobre ela, dizem que a tua irmã está de barriga. Eu não estava a entender a conversa e comentei livre de
promessas, eles já devem ir muito longe mesmo, se calhar nunca mais os vemos. E
o garoto a rir-se, ui, nem sabes a lonjura, foram até à casa da mãe dele que é
aquela ali no cabeço, ao pé da linha do comboio. Sem tempo para me refazer do
espanto, reparei que Lídia atirava o saco da escola para a valeta e, com ar de
gata assanhada, se agarrava aos braços do
Luís e desatava a pontapeá-lo nas canelas, gritando e chorando de raiva,
quem é que tá de barriga, vá diz lá outra vez que eu agarro já numa pedra e
atiro-ta à cabeça. Dizes outra vez que a minha irmã tá de barriga e nunca mais
te falo. Mais alto e forte que ela o garoto desprendeu-se, afastou-a de si queixando-se
das nódoas negras nas pernas e acrescentou, tá bem, não digo mais nada, não
precisavas era de me bater.
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