quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

No fim da vereda, junto ao portão da escola, brilhava um carro preto mais pequeno que a carrinha do Luís da mercearia. Maravilhados, os rapazes rodearam-no em círculo de respeito. Muitos de nós ainda não se tinham sentado num automóvel. Portanto, qualquer proprietário de veículo de quatro rodas nos subia na consideração. Entre a saia de minha mãe e a parede de crianças, eu entrevia um senhor barbeado e penteado e um braço de mulher. Correu célere a estupefacção, a professora é outra. Escondi-me e agarrei com mais força as ramagens, mas a minha mãe, suavemente, abriu-me o enclavinhado de dedos enquanto ouvia a porta do carro fechar e o braço desaparecia. Então os garotos correram em cacho para junto de nós e esperaram. Ouvi uns passos regulares e diferentes, recuei ainda mais dentro da saia e a minha mãe impeliu-me para o amontoado infantil, vai, filha, agora fazes o que a senhora professora mandar. Ouvi-a dizer, bom dia, minha senhora!, e vi-lhe as costas a desaparecer. Tínhamos iniciado o nosso processo de despedidas: sem lágrimas ou som. Mas o meu rosto deve ter dado alarme porque alguém me pegou pela mão 
 - Anda cá, dá a mão a esta menina tão bonita, cheia de caracóis; já viste, ela está contente por entrar na escola.
e levou a minha mão até à mão estendida da canudinhos. Fiquei ali quieta de mão dada, mas a canudinhos espevitou
 - Sou a Lídia, como é que tu te chamas?
 E eu
 - Onde é que está a professora?
 Ela a estremecer os canudos de cima abaixo
- Era aquela senhora que te pegou na mão – e estranhando -,  não a viste? Usa meias de vidro e sapatos de salto alto – e logo a inchar de orgulho -.  Eu fui esperá-la ao carro e ela disse que sou muito bonita. Olha, vi uma coisa: o homem deu-lhe um beijo na boca. – e a insistir sem transição -  Como é que tu te chamas?
Mas eu estava rendida à mão e à voz que me tinham levado. Desconhecia se era loira ou morena, bonita ou feia, de bom ou mau feitio, mas soube que ia gostar daquela mulher. E quando mal me percatei, a professora sorria na nossa frente e dizia
- Os pares de hoje vão ser de ano inteiro – a canudinhos deu-me um apertão nos dedos.
Depois a mestra olhou para nós duas e apontou-nos aos outros
- Estas duas meninas ficam sempre à frente na forma; cuidado com os empurrões que elas são muito pequeninas e podem cair.
- Sim, minha senhora. - trovejaram os garotos; e, entre cochichos, ouviram-se uns risos baixos.
- O resto falamos lá dentro. Agora limpam os pés e podem entrar. - e desviou o corpo da porta.

A professora sentou-nos na primeira carteira da fila do meio e, para minha alegria,  ficámos parceiras. Breve entendi que se eu era a menina de minha mãe, Lídia era a menina da professora. Tornámo-nos inseparáveis. A minha mãe sem que eu entendesse, são corda e caldeiro. Manhãzinha, ela passava em minha casa e seguíamos juntas para a escola e na volta fazíamos igual. Foram sobretudo  estes percursos com ela que me instruíram de mundo. Aprendia umas coisas por perguntá-las, outras pelas suas observações casuais. Por exemplo, ao segundo ou terceiro dia de escola perguntou-me porque dava sempre um beijo a minha mãe quando chegava e me despedia. E quando respondi, porque sim, não pareceu satisfeita. Voltou-me os caracóis despenteados todos descaídos para os olhos e inquiriu interessada, tu gostas? Fiquei sem jeito, nunca tinha pensado no assunto, achava que era igual em todo o lado. Respondi-lhe nesse sentido e acrescentei que à deita e também ao levantar, repetia. Intrigada, perguntei-lhe como era em sua casa. E ela, não é nada. A minha mãe só bate e ralha com a gente. Não há cá beijos. E acrescentou mais baixo, e o meu pai bate pouco, mas é sempre com o cinto, o malvado. 

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