quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

Apressei-me a dar-lhe o saco que tinha ido buscar à valeta, mas Lídia sentou-se rancorosa na beira do valado e disse de olhos baixos, não me apetece ir à escola, vão vocês. E quando perguntei o que diríamos à professora ignorou-nos catanda vidros e pequenos nadas no valado. Olhámos várias vezes para trás mas já nos virara costas  concentrada nas mãozinhas pequenas que absorviam no muro de terra. Entrámos na escola e contámos à professora o que sabíamos e onde a deixáramos. E ela, esperem aqui só um bocadinho que vou lá buscá-la, coitadinha. Façam o nome três vezes com letra bem redondinha. E saiu apressada. Então aconteceu-me o de sempre, enquanto as minhas mãos deslizavam no papel a copiar o nome, a expressão “anda de barriga” passeava-se a um lado e a outro de mim e desinquietava-me na falta de lugar. Mas quando Lídia entrou pela mão da professora, esqueci tudo. Sentou-se a meu lado e sussurrou, a professora convidou-me a ir com ela logo à tarde, diz que durmo lá e me traz amanhã para a escola. Abismada perguntei, e a tua mãe? Mas ela, sem fazer caso à pergunta, acrescentou muito depressa e a entrelaçar a mão na minha, eu disse que só ia se tu fosses e ela disse que estava bem. Encolhi com a surpresa inesperada e saiu-me a medo, mas a minha mãe não sabe, de certeza não posso ir. Mas Lídia olhou-me nos olhos e, queres ir ou não?, e ao meu aceno de aquiescência acrescentou decidida, vou falar com a senhora. Depois da sua tomada de posição a situação fluiu: driblámos os ses de minha mãe que a mãe dela pouco se importou, vestimos outra roupa por baixo das batas, tive de assistir ao surgir dos canudos enrolados num garfo aquecido e à tardinha – tinhamos escola só no período da tarde – sentámo-nos as duas muito orgulhosas no banco traseiro do carro, tímidas e amedrontadas por aquele marido tão diferente dos homens da aldeia. Eu olhava a minha amiga tão bonita como no primeiro dia de escola, a cabeça envolta em realeza e o vestuário sem graça escondido na brancura da bata nova. Quanto mais a mirava melhor entendia o pedido da professora para levar os canudos e a bata. 
Passámos as duas vinte quatro horas de sonho, atordoadas de novidade, das refeições às divisões da casa. A nossa vista encantou no mobiliário, bibelots e pequenos pormenores. Mas o maravilhoso foi descobrirmos um mundo de pacífica cumplicidade entre aqueles dois, sem gritos ou mau modo, sem lambadas e sovas, sem a exasperação que corria em nossas casas e ainda desconhecíamos estar relacionada à leveza da carteira. Durante as nossas vinte e quatro horas no principado, e em que fui contrapeso e mais assisti que participei, a professora despiu-a e deu-lhe banho amorosamente, lavou e passou toda a roupa que trouxera vestida, beijou-a vezes sem conta interrompendo as nossas brincadeiras, carregou-a no colo e mimou-a a adivinhar-lhe gostos e preferências com um cuidado tão extremo e meticuloso como eu nem sabia que existisse. Em alguns momentos, senti-me tão do outro lado da porta desse amor assolapado que entristecia na certeza de não poder ir para casa, a desejar a calma não arrebatada de minha mãe. Mas, nos poucos momentos a sós, Lídia dava-me a mão com força a murmurar, ainda bem que vieste, não vês que ela pensa que sou um bebé, leva o tempo comigo ao colo, que chatice. Eu sorria contrafeita e em silêncio. Julgava-me sem graça, fixa na certeza de que nenhum garfo, por mais quente, conseguiria fazer-me surgir o sortilégio dos canudos. Invejosa e destronada de atenção. Mas no dia seguinte, suprema glória, chegámos à escola com um balão na mão e uma data de bolachas de chocolate para o lanche. E as vinte e quatro horas com a professora deram matéria para uma semana de falatório entre a criançada e muito mais em nossas casas. Mas se eu referia esse dia, Lídia sem me olhar, um tom altaneiro de contenda, ela convidou-me foi a mim e tu foste porque eu quis. Verdade que eu sabia e sentira. Era certo eu ser melhor aluna e que a professora nos gabava geminadas e fez da minha amiga o centro da classe. Mas a vida tem um curso onde ser centro é nada. Ou é um momento. Nesse primeiro ano de escola Lídia viveu a sua eternidade de céu limpo enquanto eu vegetava mansamente, rendida à sua beleza de criança-bebé, boquinha que se esganiçava em asneiras de carroceiro, se a vida lhe trocava as voltas.

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