Logo no segundo dia acrescentámos companhia e marchámos para a escola acompanhadas do Luís
do barbeiro. Era um garoto calmo, bem disposto e palreiro que vim a descobrir
ser meu vizinho. Durante os trajectos, e à medida que ganhávamos confiança uns
com os outros e com a escola, trazíamos à conversa os bicos dos lápis afiados a canivete pelos pais ou pelos irmãos; o despique versando a letra mais redondinha e apurada no abecedário; as nossas vitórias sobre o
olhar da professora a passear nos trabalhos de casa que a Lídia descurava e eu
ou o Luís lhe arremedávamos à pressa antes da entrada, para manter o incólume
aos olhos da mestra que toda se derramava para ela, mesmo vazia de canudos; e,
sobretudo, falávamos da vida familiar.
Por vezes ganhava-os no meio escolar,
mas eles batiam-me em quase todas frentes caseiras de novidade: tinham mais
irmãos, dormiam enlatados como sardinhas, cada cama com pelo menos três
pessoas, facto que me provocava ilimitada impressão incitando experiências com as
almofadas da cama de meus pais a fingir gente, e que mais entorpeciam o meu
entendimento. Destas experiências resultava compaixão ao desbarato, parecia-me
que o sono deles era como estar preso, o corpo sempre a encontrar barreiras. Além disso, era
difícil imaginar-me deitada com uma pessoa que tinha os pés onde eu punha a
almofada. Também me dei conta que as sovas campeavam a um ritmo
que me condoía o espanto. Ciente do desconcerto que provocava,
Lídia contava-mas em pormenor de palavrões e pancada e como que se ufanava da
desgraça. Arregaçava a manga e mostrava as negras no braço, deu-me um apertão
que até ficaram os dedos aqui marcados. E se eu chegava a mão, não carregues
que isto dói, ouviste. Ao despique, o Luís subia os calções e nas coxas muito
brancas vergões roxos e cruzados esverdeavam pernas acima. Nós duas penalizadas e ele,
o meu pai bate com força e bêbado é do pior, ontem foi mesmo com aquele pau que
tem atrás da porta. Eu imaginava a cena e quase chorava, as imagens a
violentar-me, como é que tu te sentas agora, o que é que fizeste para ele te
bater tanto. O garoto encolhia os ombros à primeira metade da resposta e,
quando vem com o vinho não é preciso fazer nada, tenho é que lhe sair da
frente, mas se me chama...e continuava a andar e olhar em frente muito sério. Mais
tarde compreendi que nem sempre a violência tem um motivo próximo, pode ser um
hábito que se apanha como um trejeito, ou o resultado da bebida que desperta a
besta insatisfeita, ou apenas o lastro da miséria, purga de sobrevivência. Nessa altura, apenas pensava que o meu pai que não tinha paus atrás da porta e, graças a Deus, usava suspensórios a segurar as
calças.
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