sábado, 13 de fevereiro de 2016

"O Tempo de ir à Escola"

Logo no segundo dia acrescentámos companhia e  marchámos para a escola acompanhadas do  Luís do barbeiro. Era um garoto calmo, bem disposto e palreiro que vim a descobrir ser meu vizinho. Durante os trajectos, e à medida que ganhávamos confiança uns com os outros e com a escola, trazíamos à conversa os bicos dos lápis afiados a canivete pelos pais ou pelos irmãos; o despique versando a letra mais redondinha e apurada no abecedário; as nossas vitórias sobre o olhar da professora a passear nos trabalhos de casa que a Lídia descurava e eu ou o Luís lhe arremedávamos à pressa antes da entrada, para manter o incólume aos olhos da mestra que toda se derramava para ela, mesmo vazia de canudos;  e, sobretudo, falávamos  da vida familiar.
Por vezes ganhava-os no meio escolar, mas eles batiam-me em quase todas frentes caseiras de novidade: tinham mais irmãos, dormiam enlatados como sardinhas, cada cama com pelo menos três pessoas, facto que me provocava ilimitada impressão incitando experiências com as almofadas da cama de meus pais a fingir gente, e que mais entorpeciam o meu entendimento. Destas experiências resultava compaixão ao desbarato, parecia-me que o sono deles era como estar preso, o corpo sempre a encontrar barreiras. Além disso, era difícil imaginar-me deitada com uma pessoa que tinha os pés onde eu punha a almofada. Também me dei conta que as sovas campeavam  a um ritmo que  me condoía o espanto. Ciente do desconcerto que provocava, Lídia contava-mas em pormenor de palavrões e pancada e como que se ufanava da desgraça. Arregaçava a manga e mostrava as negras no braço, deu-me um apertão que até ficaram os dedos aqui marcados. E se eu chegava a mão, não carregues que isto dói, ouviste. Ao despique, o Luís subia os calções e nas coxas muito brancas vergões roxos e cruzados esverdeavam pernas acima. Nós duas penalizadas e ele, o meu pai bate com força e bêbado é do pior, ontem foi mesmo com aquele pau que tem atrás da porta. Eu imaginava a cena e quase chorava, as imagens a violentar-me, como é que tu te sentas agora, o que é que fizeste para ele te bater tanto. O garoto encolhia os ombros à primeira metade da resposta e, quando vem com o vinho não é preciso fazer nada, tenho é que lhe sair da frente, mas se me chama...e continuava a andar e olhar em frente muito sério. Mais tarde compreendi que nem sempre a violência tem um motivo próximo, pode ser um hábito que se apanha como um trejeito, ou o resultado da bebida que desperta a besta insatisfeita, ou apenas o lastro da miséria, purga de sobrevivência. Nessa altura, apenas pensava que o meu pai que não tinha paus atrás da porta e, graças a Deus, usava suspensórios a segurar as calças.

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