Madrinha Carmelita não sabia uma letra,
mas era ouvinte paciente e aqui e ali explicava-me palavras e expressões que eu
lia sem entender. Talvez às vezes, mijasse de pé como garantia o Luís, não
averiguei. Para fazer as necessidades fechava-se na barraca do quintal a que
chamava “a casinha” e sentava-se no cagadoiro, um banco alto e sem fundo,
assente em fortes ripas de madeira, com um buraco por baixo cheio de
porcaria malcheirosa e um inferno de moscas zumbidoras. Ao lado, a madrinha
colocara os seus artigos de limpeza, uma saca de serapilheira repleta de papeis
de jornal cortados em quadrado rigoroso. Apesar da novidade, eu rememorava o
meu bacio cor de rosa e a contagiante liberdade de cuecas abaixo que
breve devinha colectiva, caso a urgência interior apanhasse um de nós a meio de
jogos e brincadeiras; no caso de haver cocós, enquanto nos esmifrávamos atrás
de uma moita, quem estava desobrigado procurava nas imediações um
papel ou um trapo sem sinais de uso, que servisse aos acocorados que
com frequência o dividiam entre si. Ciente destas peripécias, minha mãe
colocava-me nos bolsos do bibe trapinhos que rasgava às rodilhas e acabavam a
uso das bonecas das minhas companheiras que os miravam cúmplices e invejosas, como se limparmo-nos a eles fosse delito grave, tão
bonitos, são mal empregados para limpar o cu, ajuizavam muito sérias. A minha paisagem desse
tempo reduz-se a árvores enormes, o extraordinário da copa a roubar-me céu, e
campos verdes ou amarelos de seca que atravessávamos em fila indiana,
orgulhosos da vereda alta que traçávamos em ziguezague, o Luís na
frente, desenhando elaboradas contorções de cobra. Na adultícia, a saudade
levou-me a esses lugares despidos do gigantismo infantil: curtos pedaços de
terra de cultura difícil e rala, com árvores caquéticas e iguais a
todas as outras. Mas, mergulhando nesse habitáculo dos anos
cinquenta-sessenta, sou levada a concluir que as aldeias não eram um mundo de
limpeza. Tanta vez precisámos de nos limpar e só uma me lembro, por
inexistência de papéis nos arredores, do recurso a longas e incómodas folhas de
ervas.
Porém, nos domínios da madrinha, se as
vontades me chegavam, entrava na “casinha” de rompante e a prender a
respiração, evitando baixar os olhos. Sentava-me com esforço no trono do
cagadoiro, agitava as pernas com muita força para impedir ideias às moscas, e
ensaiava uma posição artística esticando o tronco para colar o nariz aos
buracos mais próximos de mim na parede de ripas. Por exiguidade de corpo, a
pose revelava-se indomável, se acertava o nariz desacertava o traseiro, e o
inverso, de onde resultava conter a respiração o mais que conseguia. Saía agoniada
e meio vestida, o elástico das cuecas a trouxe-mouxe, vómitos involuntários a
virarem-me o estômago, o organismo numa revolta exigente que o ar puro
evaporava.
Nas tardes encaloradas, a leitura possibilitou-nos um pleno
inconsciente e foi campânula protectora, a isolar-nos no seu
amplexo. O mistério de ler para alguém é que tudo devém plural. Deixam de
existir o leitor a um lado e o ouvinte a outro, esse elo feito de palavras
lidas e compreendidas torna-os peça do mesmo mistério. Comunitárias, lemos O Pássaro Azul, A Pequena Sereia, O Pinóquio, O Touro Azul, A Bela
Adormecida, A Gata Borralheira e outros contos que não recordo. Nessas horas
pacientes, aprendemos destinos nunca imaginados, conversas de abóboras
transformadas em coches por varinhas mágicas; sapatos de vidro que calçam sem
partir; gente que acorda de um sono de cem anos com um beijo e continua a mesma
de antes, jovem, penteada, bonita, sem uma teia de aranha, um verdete de musgo,
um veio de bolor; um príncipe encantado em pássaro, a namorar à janela;
madrastas terríveis e espelhos que falam; um grilo falante e desmancha prazeres que não entende uma
criança nem por nada. Desassombradas, franqueámos o mundo de faz-de-conta. À
sombra de ler e ouvir ler, cresceu-nos o afecto e com ele a confiança. Habituámo-nos a
contar coisas uma à outra, cada uma puxando pelas pessoas que mais falta lhe
faziam.
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