sábado, 27 de fevereiro de 2016

"No Tempo da Escola"

Madrinha Carmelita não sabia uma letra, mas era ouvinte paciente e aqui e ali explicava-me palavras e expressões que eu lia sem entender. Talvez às vezes, mijasse de pé como garantia o Luís, não averiguei. Para fazer as necessidades fechava-se na barraca do quintal a que chamava “a casinha” e sentava-se no cagadoiro, um banco alto e sem fundo, assente em fortes ripas de madeira,  com um buraco por baixo cheio de porcaria malcheirosa e um inferno de moscas zumbidoras. Ao lado, a madrinha colocara os seus artigos de limpeza, uma saca de serapilheira repleta de papeis de jornal cortados em quadrado rigoroso. Apesar da novidade, eu rememorava o meu bacio cor de rosa e a contagiante liberdade de  cuecas abaixo que breve devinha colectiva, caso a urgência interior apanhasse um de nós a meio de jogos e brincadeiras; no caso de haver cocós, enquanto nos esmifrávamos atrás de uma moita, quem estava desobrigado  procurava nas imediações um papel ou um trapo sem sinais de uso, que servisse  aos acocorados que com frequência o dividiam entre si. Ciente destas peripécias, minha mãe colocava-me nos bolsos do bibe trapinhos que rasgava às rodilhas e acabavam a uso das bonecas das minhas companheiras que os miravam cúmplices e invejosas,  como se limparmo-nos a eles fosse delito grave, tão bonitos, são mal empregados para limpar o cu, ajuizavam muito sérias.  A minha paisagem desse tempo reduz-se a árvores enormes, o extraordinário da copa a roubar-me céu,  e campos verdes ou amarelos de seca que atravessávamos em fila indiana, orgulhosos da  vereda alta que traçávamos em ziguezague, o Luís na frente, desenhando elaboradas contorções de cobra. Na adultícia, a saudade levou-me a esses lugares despidos do gigantismo infantil: curtos pedaços de terra de cultura difícil e rala, com árvores caquéticas e  iguais a todas as outras.  Mas, mergulhando nesse habitáculo dos anos cinquenta-sessenta, sou levada a concluir que as aldeias não eram um mundo de limpeza. Tanta vez precisámos de nos limpar e só uma me lembro, por inexistência de papéis nos arredores, do recurso a longas e incómodas folhas de ervas.   
Porém, nos domínios da madrinha, se as vontades me chegavam, entrava na “casinha” de rompante e a prender a respiração, evitando baixar os olhos. Sentava-me com esforço no trono do cagadoiro, agitava as pernas com muita força para impedir ideias às moscas, e ensaiava uma posição artística esticando o tronco para colar o nariz  aos buracos mais próximos de mim na parede de ripas. Por exiguidade de corpo, a pose revelava-se indomável, se acertava o nariz desacertava o traseiro, e o inverso, de onde resultava conter a respiração o mais que conseguia. Saía agoniada e meio vestida, o elástico das cuecas a trouxe-mouxe, vómitos involuntários a virarem-me o estômago, o organismo numa revolta exigente que o ar puro evaporava.
Nas tardes encaloradas, a leitura possibilitou-nos um pleno inconsciente e foi campânula protectora, a isolar-nos no seu amplexo. O mistério de ler para alguém é que tudo devém plural. Deixam de existir o leitor a um lado e o ouvinte a outro, esse elo feito de palavras lidas e compreendidas torna-os  peça do mesmo mistério. Comunitárias, lemos O Pássaro Azul, A Pequena Sereia, O Pinóquio, O Touro Azul, A Bela Adormecida, A Gata Borralheira e outros contos que não recordo. Nessas horas pacientes, aprendemos destinos nunca imaginados, conversas de abóboras transformadas em coches por varinhas mágicas; sapatos de vidro que calçam sem partir; gente que acorda de um sono de cem anos com um beijo e continua a mesma de antes, jovem, penteada, bonita, sem uma teia de aranha, um verdete de musgo, um veio de bolor; um príncipe encantado em pássaro, a namorar à janela; madrastas terríveis e espelhos que falam; um grilo falante e desmancha prazeres que não entende uma criança nem por nada. Desassombradas, franqueámos o mundo de faz-de-conta.  À sombra de ler e ouvir ler, cresceu-nos o afecto e com ele a confiança. Habituámo-nos a contar coisas uma à outra, cada uma puxando pelas pessoas que mais falta lhe faziam. 

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