De súbito, os meus olhos bateram-lhes na
lombada. Eram livros diferentes dos da escola, uma fiada deles a aguardar mão
que os tomasse. Fiquei atónita, só tinha visto os livros escolares. Agradou-me
aquela companhia de papel, alinhada numa prateleira a meia altura da parede,
olhando-me vagamente, como quem está e não está, e eu sem me sentir observada, nada
constrangida. Levantei-me e confirmei que era baixa, podia tocar-lhes. Corri um
dedo à largura, a palpar-lhes o espesso, uns mais finos que outros e nenhum
igual ao anterior. E eu sem ousar desmanchar-lhes a arrumação. Aflita de
curiosidade. O que teriam dentro? Haveria figuras como no meu livro de leitura,
a tia ata, e lá estava o nó; ui, e um joelho ferido e a sangrar, a calça
rasgada; a rã, a romã, e ali figuravam elas. Senti a mesma comichão de leitura
que me assolara quando, mal o abecedário dominado, pegava no livro e o lia de
ponta a ponta, minha mãe branda, não leias mais que estragas a vista, a luz do
candeeiro é fraca. A memória a puxar a candura do Luís, quando o meu pai vem
muito bêbado e o deitamos logo, sento-me ao lume e leio o livro todo noite
afora. Mas a imagem de Lídia. Lídia a fazer-me falta para infringir. A
premência da curiosidade que a mim tolhia e nela devinha acicate e
impulso. Imaginei-nos sentadas na cama folheando os livros, cabeças
juntas, inquietas por descobrir o que diziam. Atentas. Ideava-lhe o desalinho dos
caracóis rindo do gancho que escorregava, o ritmo prestes de virar folhas, a
provocar-me com os dedinhos pequenos e ágeis, os olhos num soslaio, aprende, vê
como se faz.
Quando madrinha Carmelita entrou a
instar-me, vá anda ver o quintal, enchi-me de coragem e pedi-lhe se podia tirar
um livro para ler. A velhota quedou muito séria, a olhar-me. E logo justifiquei
arrependida da audácia, era só para ler o que têm escrito, mas não faz mal
madrinha, eu brinco no quintal. Ela retirou lentamente os óculos
embaciados e vi-lhe os olhos piscos e afinal pequenos, rodeados por dois
círculos de pele mais clara que lhe davam um ar esquisito. Pareceu-me que
pensava em alguma coisa muito longe de nós duas e do quintal. Por fim, decidiu,
se já sabes ler, vai escolher um, podes vir lê-lo cá fora se te apetecer, mas
não estragues. Parti como um sopro e escolhi um livrinho azul claro com
desenhos na capa: ao fundo, a sépia, estava desenhada uma torre de castelo
encimada por uma janelinha gradeada. Em primeiro plano, pousado na janelita e
prolongado a todo o comprimento da capa, um pássaro de longas penas. E em
caligrafia escolar podia ler-se, O Pássaro Azul. Depois deste episódio, era
ver-me de livro na mão, sentadinha no banco de madeira do quintal. À noite, a
saudade alastrava por dentro de mim, apertava-me e torcia-me até doer. Então,
mau grado gostos e novidades em casa da madrinha velha, chorava surdamente a
ausência pungente de minha mãe. Mas os dias corriam rápidos e, na perseverança
de horas a ler, breve deixei de soletrar. Estava muito contente por já saber ler
como a outra gente e tinha ganas de mostrar o que sabia, mas não havia a quem.
Entretanto, dava-me algum prazer pensar nos meus dois amigos a gaguejar
palavras e convencia-me que, mal saíssemos de férias, os vencia de uma penada.
Por vezes, a madrinha vinha sentar-se
comigo no quintal a dar uns pontos na roupa e não raro adormecia com a costura
no regaço, os óculos a descair nariz abaixo por entre gotas de suor. Nessa
tarde amodorrada, emendava a bainha a uma saia comprida enquanto eu entranhava
no papel à descoberta das palavras. Era Julho e o quintal caiado transpirava
luz e calor. À canícula, as couves derrubavam a orelha e ondas abafadiças estremeciam
o ar. Não se ouvia um som humano. À sombra da casa, nos intervalos da leitura, eu
observava os movimentos da agulha presa nos dedos grossos entaramelados pela
artrite e parecia-me milagre que a mulher não perdesse coisa tão fina e
pequena. A um dado momento, a madrinha espetou a agulha no trabalho,
espreitou-me com os olhos de égua enrugada e disse suave, eu gostava de ouvir
ler outra vez essas histórias. Imbuí de prazer e vaidade. E foi assim que me
tornei leitora aos sete anos.
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