quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

De súbito, os meus olhos bateram-lhes na lombada. Eram livros diferentes dos da escola, uma fiada deles a aguardar mão que os tomasse. Fiquei atónita, só tinha visto os livros escolares. Agradou-me aquela companhia de papel, alinhada numa prateleira a meia altura da parede, olhando-me vagamente, como quem está e não está, e eu sem me sentir observada, nada constrangida. Levantei-me e confirmei que era baixa, podia tocar-lhes. Corri um dedo  à largura, a palpar-lhes o espesso, uns mais finos que outros e nenhum igual ao anterior. E eu sem ousar desmanchar-lhes a arrumação. Aflita de curiosidade. O que teriam dentro? Haveria figuras como no meu livro de leitura, a tia ata, e lá estava o nó; ui, e um joelho ferido e a sangrar, a calça rasgada; a rã, a romã, e ali figuravam elas. Senti a mesma comichão de leitura que me assolara quando, mal o abecedário dominado, pegava no livro e o lia de ponta a ponta, minha mãe branda, não leias mais que estragas a vista, a luz do candeeiro é fraca. A memória a puxar a candura do Luís, quando o meu pai vem muito bêbado e o deitamos logo, sento-me ao lume e leio o livro todo noite afora. Mas a imagem de Lídia. Lídia a fazer-me falta para infringir. A premência da  curiosidade que a mim tolhia e nela devinha acicate e impulso. Imaginei-nos sentadas na cama  folheando os livros, cabeças juntas, inquietas por descobrir o que diziam. Atentas. Ideava-lhe o desalinho dos caracóis rindo do gancho que escorregava, o ritmo prestes de virar folhas, a provocar-me com os dedinhos pequenos e ágeis, os olhos num soslaio, aprende, vê como se faz.
Quando madrinha Carmelita entrou a instar-me, vá anda ver o quintal, enchi-me de coragem e pedi-lhe se podia tirar um livro para ler. A velhota quedou muito séria, a olhar-me. E logo justifiquei arrependida da audácia, era só para ler o que têm escrito, mas não faz mal madrinha, eu brinco no quintal.  Ela retirou lentamente os óculos embaciados e vi-lhe os olhos piscos e afinal pequenos, rodeados por dois círculos de pele mais clara que lhe davam um ar esquisito. Pareceu-me que pensava em alguma coisa muito longe de nós duas e do quintal. Por fim, decidiu, se já sabes ler, vai escolher um, podes vir lê-lo cá fora se te apetecer, mas não estragues. Parti como um sopro e escolhi um livrinho azul claro com desenhos na capa: ao fundo, a sépia, estava desenhada uma torre de castelo encimada por uma janelinha gradeada. Em primeiro plano, pousado na janelita e prolongado a todo o comprimento da capa, um pássaro de longas penas. E em caligrafia escolar podia ler-se, O Pássaro Azul. Depois deste episódio, era ver-me de livro na mão, sentadinha no banco de madeira do quintal. À noite, a saudade alastrava por dentro de mim, apertava-me e torcia-me até doer. Então, mau grado gostos e novidades em casa da madrinha velha, chorava surdamente a ausência pungente de minha mãe. Mas os dias corriam rápidos e, na perseverança de horas a ler, breve deixei de soletrar. Estava muito contente por já saber ler como a outra gente e tinha ganas de mostrar o que sabia, mas não havia a quem. Entretanto, dava-me algum prazer pensar nos meus dois amigos a gaguejar palavras  e convencia-me que, mal saíssemos de férias, os vencia de uma penada.
            Por vezes, a madrinha vinha sentar-se comigo no quintal a dar uns pontos na roupa e não raro adormecia com a costura no regaço, os óculos a descair nariz abaixo por entre gotas de suor. Nessa tarde amodorrada, emendava a bainha a uma saia comprida enquanto eu entranhava no papel à descoberta das palavras. Era Julho e o quintal caiado transpirava luz e calor. À canícula, as couves derrubavam a orelha e ondas abafadiças  estremeciam o ar. Não se ouvia um som humano. À sombra da casa, nos intervalos da leitura, eu observava os movimentos da agulha presa nos dedos grossos entaramelados pela artrite e parecia-me milagre que a mulher não perdesse coisa tão fina e pequena. A um dado momento, a madrinha espetou a agulha no trabalho, espreitou-me com os olhos de égua enrugada e disse suave, eu gostava de ouvir ler outra vez essas histórias. Imbuí de prazer e vaidade. E foi assim que me tornei leitora aos sete anos. 

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