quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

No Princípio era o Verbo...

        Ontem o dia assolou de frieza e quedei-me por casa, o espírito em devaneio por entre fogos acesos. À tardinha, depois de passaricar aqui e ali, as pernas aborreciam o lazer e a mente acudia em solicitude nervosa apelando à mudança. Vesti um  casaco e saí. No exterior, o ar pareceu-me mais morno e uns oblíquos de sol despediam amarelos doentes que o cão aproveitava, o focinho brilhando aos pequenos de sol, corpo em oferta preguiçosa. Cruzei o portão e ficou a seguir-me todo olhos fiéis, o pedido mudo diluído na íris, “volta”.
Sem particular interesse pelo caminho a tomar, segui em frente. Em frente é a forma mais linear de sabermos que nos afastamos, será também por isso que existe a expressão “fuga para a frente”. Na verdade, obliterada a logística do mundo redondo,  ir em frente é animador, dá a ilusão de mudança.  Mas pode ter sido um acaso. Que não foi primeiro, já tinha cruzado outras vezes  aquele trilho repleto de poças de água e quase deserto. Acertei os meus olhos pelo declínio do sol e, pensando que estariam no seu posto, estuguei o passo. Andei umas centenas de metros, virei uma esquina campestre já a acinzentar, e, junto aos eucaliptos, o meu olhar ziguezagueou pelo valado. Estavam sentadas juntinhas como namoro pegado. Logo o meu passo abrandou sem decisão haver. Na sua frente, passei devagar e cumprimentei desejando, naquele ápice, captar do quadro quanto podia sem interferir no encanto das duas. Conversavam ligeiramente viradas uma para a outra, dois ou três dedos de intervalo entre elas e enquanto uma falava a acenar com a mão a outra ia assentindo de cabeça. Quando passei, levantaram a cabeça e sorriram-me na confiança de ter havido outras vezes. De seguida, responderam à saudação e logo reataram conversa enquanto eu lesmava vereda fora. Já as observei em momentos diversos, quando chegam de caminho oposto; enquanto conversam; em rituais de despedida, uma a levantar-se primeiro do valado, alisando a saia nas traseiras. Certo dia atrasado de corpo e espírito, encontrei só uma a catar lenha caminho fora, pára aqui, pára ali. Acompanhámo-nos por um bocadinho, eu a esperá-la na beira do caminho enquanto partia paus e descobria acendalhas naturais. A noite começava a cair e, assim sozinha, nem a reconheci. Mas quando ela, sabe, a minha prima vive além naquele monte, a apontar para o indefinido que a noite estendia, compreendi quem era. Então, contei-lhe como gostava de as encontrar, a reparar-lhe a coincidência de horários. E ela feliz na lembrança da parente, a gente está sozinha o dia inteiro, ela ainda tem marido mas é muito doente e não pode fazer nada, nem até aqui chega, veja a senhora como ele está das pernas – e depois de uns passos em silêncio, como quem conclui -. as mulheres precisam de falar umas com as outras, é outra coisa. Olhe, este bocadinho sentadas no muro, a meio caminho das nossas casas, é um desafogo. E depois apontou um dedo orgulhoso a uma vivenda por entre laranjeiras, eu vivo lá atrás numa casinha, esta vivenda é da minha filha. Até amanhã se Deus quiser . E atalhou sem mais em direcção ao branco da vivenda a desmaiar por entre gigantes sombrios que eu sabia serem diurnas  laranjeiras impando contentamento em frutos solares.

 E ontem. Ontem mesmo. Depois de vê-las. Acudiste-me à lembrança. Não apenas tu. As minhas amigas. Voltei a casa no anteparo do escuro, o focinho do  cão uma mancha desimportante, mas ainda o contentamento dos olhos  a dilatar. Então fui revolver os álbuns de fotografias antigas. Mas não estás. Só me existes – tu e outras personagens – na memória. Guardei os álbuns a pensar que tenho de dar-te vida. Urges. Vou baptizar-te com a água das palavras. Mesmo que corram para nenhum lugar.

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