Ontem
o dia assolou de frieza e quedei-me por casa, o espírito em devaneio por entre
fogos acesos. À tardinha, depois de passaricar aqui e ali, as pernas aborreciam
o lazer e a mente acudia em solicitude nervosa apelando à mudança. Vesti
um casaco e saí. No exterior, o ar
pareceu-me mais morno e uns oblíquos de sol despediam amarelos doentes que o
cão aproveitava, o focinho brilhando aos pequenos de sol, corpo em oferta
preguiçosa. Cruzei o portão e ficou a seguir-me todo olhos fiéis, o pedido mudo
diluído na íris, “volta”.
Sem
particular interesse pelo caminho a tomar, segui em frente. Em frente é a forma
mais linear de sabermos que nos afastamos, será também por isso que existe a expressão
“fuga para a frente”. Na verdade, obliterada a logística do mundo redondo, ir em frente é animador, dá a ilusão de
mudança. Mas pode ter sido um acaso. Que
não foi primeiro, já tinha cruzado outras vezes aquele trilho repleto de poças de água e quase
deserto. Acertei os meus olhos pelo declínio do sol e, pensando que estariam no
seu posto, estuguei o passo. Andei umas centenas de metros, virei uma esquina
campestre já a acinzentar, e, junto aos eucaliptos, o meu olhar ziguezagueou
pelo valado. Estavam sentadas juntinhas como namoro pegado. Logo o meu passo
abrandou sem decisão haver. Na sua frente, passei devagar e cumprimentei
desejando, naquele ápice, captar do quadro quanto podia sem interferir no
encanto das duas. Conversavam ligeiramente viradas uma para a outra, dois ou
três dedos de intervalo entre elas e enquanto uma falava a acenar com a mão a
outra ia assentindo de cabeça. Quando passei, levantaram a cabeça e sorriram-me
na confiança de ter havido outras vezes. De seguida, responderam à saudação e
logo reataram conversa enquanto eu lesmava vereda fora. Já as observei em
momentos diversos, quando chegam de caminho oposto; enquanto conversam; em rituais
de despedida, uma a levantar-se primeiro do valado, alisando a saia nas
traseiras. Certo dia atrasado de corpo e espírito, encontrei só uma a catar
lenha caminho fora, pára aqui, pára ali. Acompanhámo-nos por um bocadinho, eu a
esperá-la na beira do caminho enquanto partia paus e descobria acendalhas
naturais. A noite começava a cair e, assim sozinha, nem a reconheci. Mas quando
ela, sabe, a minha prima vive além naquele monte, a apontar para o indefinido
que a noite estendia, compreendi quem era. Então, contei-lhe como gostava de as
encontrar, a reparar-lhe a coincidência de horários. E ela feliz na lembrança
da parente, a gente está sozinha o dia inteiro, ela ainda tem marido mas é muito
doente e não pode fazer nada, nem até aqui chega, veja a senhora como ele está
das pernas – e depois de uns passos em silêncio, como quem conclui -. as
mulheres precisam de falar umas com as outras, é outra coisa. Olhe, este
bocadinho sentadas no muro, a meio caminho das nossas casas, é um desafogo. E depois apontou um dedo orgulhoso a uma vivenda por entre
laranjeiras, eu vivo lá atrás numa casinha, esta vivenda é da minha filha. Até
amanhã se Deus quiser . E atalhou sem mais em direcção ao branco da vivenda a
desmaiar por entre gigantes sombrios que eu sabia serem diurnas laranjeiras impando contentamento em frutos
solares.
E ontem. Ontem mesmo. Depois de vê-las.
Acudiste-me à lembrança. Não apenas tu. As minhas amigas. Voltei a casa no
anteparo do escuro, o focinho do cão uma
mancha desimportante, mas ainda o contentamento dos olhos a dilatar. Então fui revolver os álbuns de
fotografias antigas. Mas não estás. Só me existes – tu e outras personagens –
na memória. Guardei os álbuns a pensar que tenho de dar-te vida. Urges. Vou baptizar-te
com a água das palavras. Mesmo que corram para nenhum lugar.
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