Conheci-a
no país da infância, aquele lugar imune às derivas climáticas e ao rodar das
estações, pedaço de tempo em que o mundo
inteiro cabe no que os olhos alcançam. Era
um sete de Outubro qualquer e estávamos as duas na porta da escola. Eu atordoava de novidade e timidez, siamesa de
minha mãe, no tormento da separação que chegaria fatal. Ela, parecendo indiferente
à minha pessoa, absorvia no seu show particular,
saltinho aqui e ali, a exibir os
caracóis que a mãe desabrida lhe arrumava a espaços, atirando em voz de lata
ferrugenta, pára quieta gaiata, desmanchas o cabelo todo, tou aqui tou-te a
assentar a mão. Por mim, embasbacava nos caracóis alinhados e enrolados em
canudos um após outro, iguais aos dos reis que o meu tio mostrava nos livros
e que eu, desconhecendo a existência de cabeleiras, admitia serem parte da sua diferença
específica. Era óbvio que os reis tinham cabelo branco comprido e aos canudos
acompanhado de sangue azul igual ao da
caneta de tinta permanente que a minha tia guardava na gaveta do guarda-loiça. Mas aquela garota era muito mais bonita que
eles. De início, julguei-a uma princesa de pele branca e boquinha de romã, a oscilar os canudinhos a um
lado e a outro em sincronia monárquica. Mas depois observei as nossas mães: a
minha esperava calma, imersa na sua natureza silenciosa a que jamais ouvi um grito. Nessa manhã, usava a saia preta
de ramagens sobre uma blusa clara que ajustava com o cinto elástico; tinha
alisado a permanente em respeito pela risca ao lado, de forma que os caracóis
castanhos penduravam sobre as orelhas, duas molas compridas a sujeitá-los. A
minha mãe era jovem, magra, de cheiro limpo e doce, tinha voz maviosa e eu
sabia de fonte segura que gostava de mim. A mãe dela era brusca, velha e quando
se mexia cheirava mal. Trazia um lenço escuro amarrado à cabeça e atado atrás
com pontas que penduravam para as costas e não lhe vi um fio de cabelo; usava
saia até aos pés e um xaile preto traçado sobre o peito com dois ou três
alfinetes de ama pendurados e parecia-me que estava descalça, facto que me
intrigou. Não consegui descobrir se vestia blusa. No rosto largo havia uma
zanga reiterada com o mundo, o grito da voz era serrote a arranhar na lata e
pensei que a mulher não devia saber dar beijos ou fazer festas. Porém, quando
assuntei minha mãe logo ela se apressou, está caladinha, falamos depois lá em
casa. Portanto, desisti da ideia de que a minha companheira fosse princesa de
verdade. À força de perguntas mil, minha mãe contara-me que os pais da
princesas eram os reis, que tinham tudo que queriam, dinheiro, castelos,
cavalos atrelados a umas carrocinhas tapadas e com janelas onde se passeavam e a
que chamavam coches; as senhoras usavam saiotes, ignota peça de roupa interior , e vestidos bonitos e compridos, que, coisa para mim incompreensível, lhes bordavam a ouro. Ora
a velha não era uma aia, eu já ouvira a criança chamar-lhe mãe. Portanto, alijada a última
esperança, resignei-me a acompanhar na escola a menina mais bonita do mundo, mas sem coroa nem coches.
Entretanto,
os garotos que já frequentavam a escola no ano anterior iam chegando sem
novidade. Davam uma mirada aos caloiros e desvaneciam também com a
franguinha, enfileirando para lhe tocar os caracóis que a mãe vigiava de mau modo, a resmungar, já veha e havia de me vir um pingarelho destes. Os mais velhos admiravam-na em molde escolar, mexendo-lhe nos cabelos em troca de pratinhas pequenas, bocadinhos de lanche, mostras e saberes
de casa de banho, avanços numa corrida. E também se exibiam para nós e para as
nossas mães em corridas de velocidade à volta do edifício, no jogo da apanhada, a
saltar à corda que pesava nos pulsos e dera liberdade a um caldeiro de poço. Todos se
alvoroçavam com os novatos, onde é que
moras, já tens os livros, compraste a pedra e a pena, queres ir com a gente à
saída da escola, moramos para os teus lados, vem lá com a gente e deixamos-te espreitar as rãs no poço do meu avô. E um ou outro aluno mais abonado puxava de uma caixa
com uma dúzia de lápis de cor Viarco, desenfiava a tampa de cartão e com um
toque de braço apareciam os doze à espreita, coloridos e afiados. Acolhiam-nos
exclamativas frases e olhos. Logo surgiam pedidos insolventes, deixas-me pintar
com o azulinho claro e o cor de laranja,
dou-te a minha carica de laranjada, uma castanha crua, este berlinde...
Contempladora
do novo mundo, encolhia-me cada vez mais e, quando todas as
brincadeiras pararam súbitas, antevendo o desfecho, desejei o ninho. Ouvi
distintamente, Vem aí a professora!
Não
fazia ideia do que fosse uma professora, nunca tinha visto nenhuma. Portanto,
mirrei o mais que pude, a desejar uma
osmose que me perdesse nas ramagens rodadas da saia de minha mãe. Olhei em
frente e a lindeza dos canudos ia, mão dada com as mais expeditas, esperar a
mestra. Invejei-lhe a audácia.
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