terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

Conheci-a no país da infância, aquele lugar imune às derivas climáticas e ao rodar das estações, pedaço de tempo em que  o mundo inteiro cabe no que os olhos alcançam.  Era um sete de Outubro qualquer e estávamos as duas na porta da escola.  Eu atordoava de novidade e timidez, siamesa de minha mãe, no tormento da separação que chegaria fatal. Ela, parecendo indiferente à minha pessoa, absorvia no seu show  particular, saltinho aqui e  ali, a exibir os caracóis que a mãe desabrida lhe arrumava a espaços, atirando em voz de lata ferrugenta, pára quieta gaiata, desmanchas o cabelo todo, tou aqui tou-te a assentar a mão. Por mim, embasbacava nos caracóis alinhados e enrolados em canudos um após outro, iguais aos dos reis que o meu tio mostrava nos livros e que eu, desconhecendo a existência de cabeleiras, admitia serem parte da sua diferença específica. Era óbvio que os reis tinham cabelo branco comprido e aos canudos acompanhado de  sangue azul igual ao da caneta de tinta permanente que a minha tia guardava na gaveta do guarda-loiça.  Mas aquela garota era muito mais bonita que eles. De início, julguei-a uma princesa de pele branca e  boquinha de romã, a oscilar os canudinhos a um lado e a outro em sincronia monárquica. Mas depois observei as nossas mães: a minha esperava calma, imersa na sua natureza silenciosa a que jamais  ouvi um grito. Nessa manhã, usava a saia preta de ramagens sobre uma blusa clara que ajustava com o cinto elástico; tinha alisado a permanente em respeito pela risca ao lado, de forma que os caracóis castanhos penduravam sobre as orelhas, duas molas compridas a sujeitá-los. A minha mãe era jovem, magra, de cheiro limpo e doce, tinha voz maviosa e eu sabia de fonte segura que gostava de mim. A mãe dela era brusca, velha e quando se mexia cheirava mal. Trazia um lenço escuro amarrado à cabeça e atado atrás com pontas que penduravam para as costas e não lhe vi um fio de cabelo; usava saia até aos pés e um xaile preto traçado sobre o peito com dois ou três alfinetes de ama pendurados e parecia-me que estava descalça, facto que me intrigou. Não consegui descobrir se vestia blusa. No rosto largo havia uma zanga reiterada com o mundo, o grito da voz era serrote a arranhar na lata e pensei que a mulher não devia saber dar beijos ou fazer festas. Porém, quando assuntei minha mãe logo ela se apressou, está caladinha, falamos depois lá em casa. Portanto, desisti da ideia de que a minha companheira fosse princesa de verdade. À força de perguntas mil, minha mãe contara-me que os pais da princesas eram os reis, que tinham tudo que queriam, dinheiro, castelos, cavalos atrelados a umas carrocinhas tapadas e com janelas onde se passeavam e a que chamavam coches; as senhoras usavam saiotes, ignota peça de roupa interior , e vestidos bonitos e compridos, que, coisa para mim incompreensível, lhes bordavam a ouro. Ora a velha não era uma aia, eu já ouvira a criança  chamar-lhe mãe. Portanto, alijada a última esperança, resignei-me a acompanhar na escola a menina mais bonita do mundo, mas sem coroa nem coches.
Entretanto, os garotos que já frequentavam a escola no ano anterior iam chegando sem novidade. Davam uma mirada aos caloiros e desvaneciam também com a franguinha, enfileirando para lhe tocar os caracóis que a mãe vigiava de mau modo, a resmungar, já veha e havia de me vir um pingarelho destes.  Os mais velhos admiravam-na em molde escolar, mexendo-lhe nos cabelos em troca de pratinhas pequenas, bocadinhos de lanche, mostras e saberes de casa de banho, avanços numa corrida. E também se exibiam para nós e para as nossas mães em corridas de velocidade à volta do edifício, no jogo da apanhada, a saltar à corda que pesava nos pulsos e dera liberdade a um caldeiro de poço. Todos se alvoroçavam com  os novatos, onde é que moras, já tens os livros, compraste a pedra e a pena, queres ir com a gente à saída da escola, moramos para os teus lados, vem lá com a gente e deixamos-te espreitar as rãs no poço do meu avô. E um ou outro aluno mais abonado puxava de uma caixa com uma dúzia de lápis de cor Viarco, desenfiava a tampa de cartão e com um toque de braço apareciam os doze à espreita, coloridos e afiados. Acolhiam-nos exclamativas frases e olhos. Logo surgiam pedidos insolventes, deixas-me pintar com o azulinho claro  e o cor de laranja, dou-te a minha carica de laranjada, uma castanha crua, este berlinde...
Contempladora do novo mundo, encolhia-me cada vez mais e, quando todas as brincadeiras pararam súbitas, antevendo o desfecho, desejei o ninho. Ouvi distintamente, Vem aí a professora!

Não fazia ideia do que fosse uma professora, nunca tinha visto nenhuma. Portanto, mirrei o mais que pude,  a desejar uma osmose que me perdesse nas ramagens rodadas da saia de minha mãe. Olhei em frente e a lindeza dos canudos ia, mão dada com as mais expeditas, esperar a mestra.  Invejei-lhe a audácia.

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