No
desfiar de lembranças vim a saber que madrinha Carmelita não era, como eu
pensava, uma velhota desvalida. Única sobrevivente de seis
irmãos, fora casada e tinha uma filha e
um neto. O marido morrera ainda novo levado por “uma doença má” e a filha
vivia no estrangeiro com o rebento. Eu herdara-lhe o quarto e os livros que
líamos dera-lhos o pai, guarda-livros numa empresa da vila mais
próxima; um senhor que até fazia a barba todos os dias e usava chapéu de aba mole,
repisava a madrinha, uma dobra de orgulho na voz. E depois mostrou-me uma fotografia
onde um jovem de bigode, alto e enchapelado, se deitava a olhar para nós
encostado a uma incompreensível bengalinha. Conhecedora do meu estado
perguntador, a madrinha informou que não era coxo, que a bengala naquele tempo
condizia e era só para enfeite. Pensei que as pessoas antigas eram bem
esquisitas se usavam bengala sem precisão
e selei o assunto. Por essa altura, a mente fervilhava-me de pensamentos etéreos,
bolhas de sabão que esvaneciam sem chegar a preocupar-me. No entanto, quando à
noite a saudade se instalava e a imagem de minha mãe infiltrava no sangue,
perguntava-me como é que a filha de madrinha Carmelita aguentava viver longe
dela, como é que a mãe era capaz de fingir que não tinha filha, e mais raciocínios
desta natureza, de resposta incapaz. Uma tarde, a meio das confidências de
outras eras, perguntei-lhe se a filha não a visitava. Silêncio. Ouvia-se apenas o ofegar da terra à torrina. A
velha, fechada em mutismo, perdia-se a olhar para nada. Incomodada, cheguei a
pensar que não gostava da filha e se envergonhava de mo dizer. Mas veio o acrescento
lacónico, não pode, nem conheço o meu neto, vê lá tu. Depois olhou-me simpática
e mumurou, um dia, quando fores mais crescida, conto-te esta história, agora
vamos ouvir a do livro. E baixou a cabeça muito interessada em acertar pontos
numa bainha.
Certo
domingo, acordei e ao entrar na cozinha saltou-me o ar novo e desencasquiado de
madrinha Carmelita. A mulher cheirava a banho e sabonete, o cabelo ainda húmido
modelando certezas de pente no esculpido das ondas. Ao ruído da porta, cumprimentou
e, sorrateira, lançou-me o sorriso de quem esconde um segredo benévolo. Na mão
deslizava-lhe um ferro pressuroso, e, de quando em vez, erguia-o à altura da
boca e soprava-o junto às aberturas da base a espertar as brasas no sentido da
chaminé, empurrando para longe da roupa os flocos de cinza que o arrefeciam. Admirei-lhe os movimentos, maravilhada com a
sabedoria feminina, a precisão de gestos, o jeito atento do corpo debruçado, o
ferro ora deslizando ora insistindo de bico, a demorar-se numa prega mais funda
ou a desamarrotar um viés. Em casa, ficava horas assim, olhando as mãos que
desembrulhavam a roupa peça a peça, a sacudiam e viravam na mesa da cozinha, a
passavam por inteiro até estar pronta a vestir ou ser pendurada; a maioria das
peças era dobrada em destreza maquinal e perfeita, eu a adivinhar a forma como
as mãos se impunham ao tecido, a tocá-lo em movimentos limpos e seguros, como
se um amor desvelado se fosse distribuindo e acamando num tabuleiro, peça a
peça. Na organização das roupas dobradas umas sobre as outras pairava um repositório de gestos, de esforço,
de varicosas dores de pernas e muita paciência amorosa. Aproximei-me de Carmelita e notei-lhe o aroma
a sabonete de alfazema enquanto ela corria o ferro pelo avesso de um vestido de veludo
preto, brilhante como o pelo de um gato. Mal me cheguei, pousou-o no descanso
e, enquanto me ajeitava o pequeno almoço, deu-me pressa aos maxilares e
informou que íamos as duas a um casamento. À boa nova, senti o coração a
expandir no peito e o sangue a ganhar
força nova. Ia, finalmente, poder ver
uma noiva. Delas, eu sabia apenas o que ouvira, “não há noivas feias”, e em mim
não havia maior estranheza, matutava vezes sem conta no incógnito fenómeno que
fazia todas as noivas bonitas. Em tempos diferentes e com diferentes pessoas, insistira
na pergunta, mas não há mesmo noivas feias, e se for uma rapariga muito feia.
Mas a resposta peremptória era inalterável, “no dia do casamento, todas as
noivas são bonitas". O que só
acrescentava o meu desconcerto.
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