domingo, 28 de fevereiro de 2016

No Tempo da Escola"

No desfiar de lembranças vim a saber que madrinha Carmelita não era, como eu pensava, uma velhota desvalida. Única sobrevivente de seis irmãos,  fora casada e tinha uma filha e um neto. O marido morrera ainda novo levado por “uma doença má” e a filha vivia no estrangeiro com o rebento. Eu herdara-lhe o quarto e os livros que líamos  dera-lhos o pai,  guarda-livros numa empresa da vila mais próxima; um senhor que até fazia a barba todos os dias e usava chapéu de aba mole, repisava a madrinha, uma dobra de orgulho na voz. E depois mostrou-me uma fotografia onde um jovem de bigode, alto e enchapelado, se deitava a olhar para nós encostado a uma incompreensível bengalinha. Conhecedora do meu estado perguntador, a madrinha informou que não era coxo, que a bengala naquele tempo condizia e era só para enfeite. Pensei que as pessoas antigas eram bem esquisitas se usavam bengala  sem precisão e selei o assunto. Por essa altura, a mente fervilhava-me de pensamentos etéreos, bolhas de sabão que esvaneciam sem chegar a preocupar-me. No entanto, quando à noite a saudade se instalava e a imagem de minha mãe infiltrava no sangue, perguntava-me como é que a filha de madrinha Carmelita aguentava viver longe dela, como é que a mãe era capaz de fingir que não tinha filha, e mais raciocínios desta natureza, de resposta incapaz. Uma tarde, a meio das confidências de outras eras, perguntei-lhe se a filha não a visitava. Silêncio.  Ouvia-se apenas o ofegar da terra à torrina. A velha, fechada em mutismo, perdia-se a olhar para nada. Incomodada, cheguei a pensar que não gostava da filha e se envergonhava de mo dizer. Mas veio o acrescento lacónico, não pode, nem conheço o meu neto, vê lá tu. Depois olhou-me simpática e mumurou, um dia, quando fores mais crescida, conto-te esta história, agora vamos ouvir a do livro. E baixou a cabeça muito interessada em acertar pontos numa bainha.


Certo domingo, acordei e ao entrar na cozinha saltou-me o ar novo e desencasquiado de madrinha Carmelita. A mulher cheirava a banho e sabonete, o cabelo ainda húmido modelando certezas de pente no esculpido das ondas. Ao ruído da porta, cumprimentou e, sorrateira, lançou-me o sorriso de quem esconde um segredo benévolo. Na mão deslizava-lhe um ferro pressuroso, e, de quando em vez, erguia-o à altura da boca e soprava-o junto às aberturas da base a espertar as brasas no sentido da chaminé, empurrando para longe da roupa os flocos de cinza que o arrefeciam.  Admirei-lhe os movimentos, maravilhada com a sabedoria feminina, a precisão de gestos, o jeito atento do corpo debruçado, o ferro ora deslizando ora insistindo de bico, a demorar-se numa prega mais funda ou a desamarrotar um viés. Em casa, ficava horas assim, olhando as mãos que desembrulhavam a roupa peça a peça, a sacudiam e viravam na mesa da cozinha, a passavam por inteiro até estar pronta a vestir ou ser pendurada; a maioria das peças era dobrada em destreza maquinal e perfeita, eu a adivinhar a forma como as mãos se impunham ao tecido, a tocá-lo em movimentos limpos e seguros, como se um amor desvelado se fosse distribuindo e acamando num tabuleiro, peça a peça. Na organização das roupas dobradas umas sobre as outras  pairava um repositório de gestos, de esforço, de varicosas dores de pernas e muita paciência amorosa.  Aproximei-me de Carmelita e notei-lhe o aroma a sabonete de alfazema enquanto ela corria o ferro pelo avesso de um vestido de veludo preto, brilhante como o pelo de um gato. Mal me cheguei, pousou-o no descanso e, enquanto me ajeitava o pequeno almoço, deu-me pressa aos maxilares e informou que íamos as duas a um casamento. À boa nova, senti o coração a expandir no peito e  o sangue a ganhar força nova.  Ia, finalmente, poder ver uma noiva. Delas, eu sabia apenas o que ouvira, “não há noivas feias”, e em mim não havia maior estranheza, matutava vezes sem conta no incógnito fenómeno que fazia todas as noivas bonitas. Em tempos diferentes e com diferentes pessoas, insistira na pergunta, mas não há mesmo noivas feias, e se for uma rapariga muito feia. Mas a resposta peremptória era inalterável, “no dia do casamento, todas as noivas são bonitas".  O que só acrescentava o meu desconcerto. 

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