sábado, 13 de fevereiro de 2016

"O Tempo de Ir à Escola"

A verdade é que o nosso mundo era quase exclusivamente da lavra das mães. Os pais eram pessoas de quem não gostávamos, tínhamos medo e até terror deles. Pai era força bruta que sempre nos dobra a autoridade na família. O seu estatuto era ser implacável e desconhecia os termos esquecer, perdoar, desculpar. O nosso era mundo castigador e descomprimia na violência física, de eficácia obtida e comprovada em experiência ancestral. Obrigavam-nos à vassalagem - pedir desculpa ou perdão - e não desculpavam, fechados na mudez de um rancor que não entendíamos, as nossas brigas aconteciam para resolver rancores, tudo passava após um “ensaio de murros” infantis. Mas não havia tal fenómeno no mundo adulto.  Ao chamamento dos pais tínhamos de acudir prestes, eles encontravam-nos no fim do mundo se  preciso fosse e, em caso de fuga, podiam rachar-nos ao meio se quisessem, ameaça que muitos gritavam a espumar. A arbitrariedade dos progenitores era total, mas não pensávamos nela. Era natural. Comparativamente às outras crianças, apercebi-me da sorte que tinha. O meu pai ainda não me batera, o que deixava os colegas de boca aberta, e, como todos os outros pais, vivia fora de casa, no trabalho ou na taberna. Para mim, era um rapaz com um cheiro diferente da minha mãe, mais activo talvez, mas não desagradável; a sua figura magra parecia-me altíssima e pouco nos frequentávamos um ao outro; estava sempre a montar-se na bicicleta a pedal para ir a algum lugar; tinha um colo inóspito para onde me requisitava em serviço utilitário e raro, em geral, para descobrir alguma coisa sem perguntar a minha mãe. Ao invés dela que transcendia o papel, o meu pai recusava-o involuntário e muitas vezes me chamava o nome de uma prima a sugerir, anda cá ao tio. Ainda vivia desfasado: durante a semana era chefe de família e no dia de lazer sobrava-lhe na diversão o desportivismo de arremedar os solteiros. Considerava-o visita no gineceu que eu e minha mãe habitávamos, a sua ternura reinando calada ou a cantar-me canções em voz baixa e melodiosa; delas me sobrou o verso de uma, solicitada amiúde e talvez premonitória “foi a camélia que caiu ao rio e depois morreu, nunca mais se viu”. A minha mãe contava histórias como ninguém.  
Breve me dei conta da fortuna, eu tinha uma mãe diferente das outras. Quando Lídia e Luís comentavam com naturalidade os maus tratos dos pais e eu escandalizava, e a tua mãe não fez nada?, eles, não quis saber, quando calha ela também bate igual e às vezes ele chega-me com mais força porque ela faz queixa. Eu dava graças por ser a mais velha, olhava a minha mana ainda no berço e pensava que nunca seria capaz de agir como os irmãos mais velhos dos meus colegas que na ausência dos pais lhes copiavam o gesto e moíam os mais novos de pancada. E já nessa altura estava segura: a minha mãe jamais faria queixas ou seria capaz de assistir uma sova injusta sem se mover. 
Mas a verdade é que, aos domingos, bebedeiras azedas engalfinhavam os homens  e não era raro saírem dois da taberna em roldão, a esmurrar-se pelo chão de terra e que os meus dois amigos se aproximavam  do círculo de assistentes que os seguira numa morbidez que nunca entendi. Que havia vezes em que até as mulheres se derrubavam pelo chão da mercearia, o caixeiro de lápis atrás da orelha a separá-las, braços a ordenar o matagal de cabelos devastados por ventos de ódio, os lenços da cabeça um esfregão repisado, e ele, então, então... Indiferentes à bandeira branca, as beligerantes cresciam numa exaltação em contundência de punhal, cuspindo uma à outra palavrões e ofensas, às vezes um sopapo desastrado no intermediário que até o lápis lhe voava e ouvíamos-lhe o baque no chão de cimento a rebolar pelo esquinado, ou o som amortecido se caía dentro da tulha da alfarroba ou do milho, os ingredientes a acordar, que é lá isso. E ele a exibir o sinal vermelho, esquivando-se a uma mão pesada e capaz de voltar para trás do balcão a rectificar o peso do quilo de açúcar amarelo,  parem lá com isso senão ainda chamo aqui a guarda e vão as duas presas. A estas palavras gritadas, elas separavam-se e seguiam para casa cabisbaixas e descompostas, esquecidas das mercearias, a resmonear sentenças de morte e secretamente envergonhadas.
Era assim a autoridade do nosso mundo , espumava como garrafa de champanhe. E entornava desmedida e quezilenta mal havia um toque na rolha. A maioria das conquistas fazia-se à custa de fúrias maldosas, murros, puxões de cabelos, pauladas, canivetes que se abriam e podiam cortar. A escola primária trouxe-nos o poder do grupo e situou-nos.  Naquele ano, a professora foi um oásis de compreensão e entendimento, o tempo de descanso da criançada. Não houve ninguém na minha sala que desgostasse da escola. E os alunos da sala ao lado lançavam-nos invejas anzoladas, quem dera termos a mesma professora, a nossa é velha, bate com força e nunca se ri.

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