A
verdade é que o nosso mundo era quase exclusivamente da lavra das mães. Os pais
eram pessoas de quem não gostávamos, tínhamos medo e até terror deles.
Pai era força bruta que sempre nos dobra a autoridade na família. O seu estatuto era ser implacável e desconhecia os termos
esquecer, perdoar, desculpar. O nosso era mundo castigador e descomprimia na violência física, de eficácia obtida e comprovada em experiência
ancestral. Obrigavam-nos à vassalagem - pedir desculpa ou perdão - e não
desculpavam, fechados na mudez de um rancor que não entendíamos, as nossas
brigas aconteciam para resolver rancores, tudo passava após um “ensaio de
murros” infantis. Mas não havia tal fenómeno no mundo adulto. Ao chamamento dos pais tínhamos de acudir
prestes, eles encontravam-nos no fim do mundo se preciso fosse e, em caso de
fuga, podiam rachar-nos ao meio se quisessem, ameaça que muitos gritavam a
espumar. A arbitrariedade dos progenitores era total, mas não pensávamos nela.
Era natural. Comparativamente às outras crianças, apercebi-me da sorte que tinha.
O meu pai ainda não me batera, o que deixava os colegas de boca aberta, e, como
todos os outros pais, vivia fora de casa, no trabalho ou na taberna. Para mim, era
um rapaz com um cheiro diferente da minha mãe, mais activo talvez, mas não
desagradável; a sua figura magra parecia-me altíssima e pouco nos
frequentávamos um ao outro; estava sempre a montar-se na bicicleta a pedal para
ir a algum lugar; tinha um colo inóspito para onde me requisitava em serviço utilitário e raro, em geral, para descobrir alguma coisa sem perguntar a minha mãe. Ao invés
dela que transcendia o papel, o meu pai recusava-o involuntário e muitas vezes me
chamava o nome de uma prima a sugerir, anda cá ao tio. Ainda vivia desfasado: durante
a semana era chefe de família e no dia de lazer sobrava-lhe na diversão o
desportivismo de arremedar os solteiros. Considerava-o visita no gineceu que eu e minha
mãe habitávamos, a sua ternura reinando calada ou a cantar-me canções em voz baixa
e melodiosa; delas me sobrou o verso de uma, solicitada amiúde e talvez
premonitória “foi a camélia que caiu ao rio e depois morreu, nunca mais se viu”.
A minha mãe contava histórias como ninguém.
Breve me dei conta da fortuna, eu tinha uma mãe diferente das outras. Quando Lídia e Luís comentavam com naturalidade os maus tratos dos pais e eu escandalizava, e a tua mãe não fez nada?, eles, não quis saber, quando calha ela também bate igual e às vezes ele chega-me com mais força porque ela faz queixa. Eu dava graças por ser a mais velha, olhava a minha mana ainda no berço e pensava que nunca seria capaz de agir como os irmãos mais velhos dos meus colegas que na ausência dos pais lhes copiavam o gesto e moíam os mais novos de pancada. E já nessa altura estava segura: a minha mãe jamais faria queixas ou seria capaz de assistir uma sova injusta sem se mover.
Breve me dei conta da fortuna, eu tinha uma mãe diferente das outras. Quando Lídia e Luís comentavam com naturalidade os maus tratos dos pais e eu escandalizava, e a tua mãe não fez nada?, eles, não quis saber, quando calha ela também bate igual e às vezes ele chega-me com mais força porque ela faz queixa. Eu dava graças por ser a mais velha, olhava a minha mana ainda no berço e pensava que nunca seria capaz de agir como os irmãos mais velhos dos meus colegas que na ausência dos pais lhes copiavam o gesto e moíam os mais novos de pancada. E já nessa altura estava segura: a minha mãe jamais faria queixas ou seria capaz de assistir uma sova injusta sem se mover.
Mas a verdade é que, aos domingos, bebedeiras azedas engalfinhavam os homens e não era raro saírem dois da taberna em roldão, a
esmurrar-se pelo chão de terra e que os meus dois amigos se aproximavam do círculo de assistentes que os seguira numa morbidez que nunca
entendi. Que havia vezes em que até as mulheres se derrubavam pelo chão da
mercearia, o caixeiro de lápis atrás da orelha a separá-las, braços a ordenar o matagal de cabelos devastados por ventos de ódio, os lenços da cabeça um esfregão repisado, e ele, então, então... Indiferentes à bandeira branca, as beligerantes cresciam numa exaltação em contundência de punhal, cuspindo uma à outra palavrões e ofensas, às vezes um sopapo desastrado no intermediário que até o lápis lhe voava e ouvíamos-lhe o baque no chão de cimento a rebolar pelo esquinado, ou o som amortecido se caía dentro da tulha da alfarroba ou do milho, os ingredientes a acordar, que é lá isso. E ele a exibir o sinal vermelho, esquivando-se a uma mão pesada e capaz de voltar para
trás do balcão a rectificar o peso do quilo de açúcar amarelo, parem lá
com isso senão ainda chamo aqui a guarda e vão as duas presas. A estas palavras gritadas, elas
separavam-se e seguiam para casa cabisbaixas e descompostas, esquecidas das mercearias, a resmonear
sentenças de morte e secretamente envergonhadas.
Era assim a autoridade do nosso mundo , espumava como garrafa de champanhe. E entornava desmedida e quezilenta mal havia um toque na rolha. A
maioria das conquistas fazia-se à custa de fúrias maldosas, murros, puxões de
cabelos, pauladas, canivetes que se abriam e podiam cortar. A escola primária
trouxe-nos o poder do grupo e situou-nos. Naquele ano, a professora
foi um oásis de compreensão e entendimento, o tempo de descanso da criançada. Não houve ninguém na
minha sala que desgostasse da escola. E os alunos da sala ao lado lançavam-nos invejas anzoladas, quem dera termos a mesma professora, a nossa é velha, bate com força e nunca se ri.
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