quinta-feira, 10 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Lídia era outra coisa. Voltei a vê-la na tarde em que o avô veio pastar as vacas no valado frente a minha casa. O avô de Lídia era uma personagem. Passava-me à porta diariamente e jamais o observara em pormenor. Num relâmpago, rendi-me aos seus encantos. O primeiro era sonoro, chamou-me de “minha vizinha” e eu cresci de contentamento ainda que não tivesse ideia do lugar onde ele morava. O segundo foi que me trouxe a minha amiga e preguiçou a olhar-nos, como se fôssemos milagre de inaudita beleza, repetindo baixinho e a espaçar muito as frases, então esta é que é a menina de quem tu falas... esta menina é a tua amiguinha... tá bem.... E o terceiro prendia-se-lhe ao todo do corpo. Era um gigante – ou parecia-me –. Tinha cara redonda aureolada por cabelo branco encaracolado em rolinhos pequenos e separados, como os meninos Jesus dos santinhos mas em versão de velho; os olhos eram muito azuis e a barba rala, bem crescida e meio loira; nas pernas usava uns safões castanhos de pele de borrego e, na parte superior do corpo, arreios com fivelas atravessavam-lhe o peito a segurar uma espécie de manta escura que usava sobre as camisolas. Havia na sua figura um ar de guerreiro imponente e lendário, sem correspondência à brandura arrastada da voz.  Além do mais, geminava com um cajado que me abalroava e duas vaquinhas faceiras, simpáticos objectos do seu interesse monologado de viva voz, vamos embora para casa que já é tarde, as minhas meninas estão com medo do escuro; ou, aproveitem o lanche suas marotas; vá come lá essa flor, chega-te aqui a esta ervinha, e dava-lhes o comer à boca depois de desvelada ceifa com uma foice pequena que puxava dos arreios. Em carinhos de zelo mal tapado, deixou-nos também alimentá-las. Como paga, teve a minha amizade até ao fim. Fui para sempre sua vizinha. 
Todos os dias o velho montava a carroça e, ajudado pela mulher, ia, porta a porta, vender o leite na vila. Em exactidão de ponteiros, passavam sisudos e compostos, sentados a meio do trem. O meu vizinho dos safões seguia muito descansado, arreatas no colo. E as rodas chiando sem pressas na claridade que despontava, as  vasilhas de lata na indiferença habitual, a resvalar batendo uma na outra a cada desnível da estrada, a mão da mulher lançada atrás, prevenção de desastre mais incómodo. E ele ia tirando o chapéu a toda a gente que os cruzava, salve-a(o) Deus.  
Este velho vivia de tamancos, não sabia uma letra, apontava encomendas, ganhos e perdas diários, a poder de riscos nos rebordos da carroça, a um lado o sector de encomendas e a outro a finança. Mas, para mim, tinha fortuna pessoal e era letrado.

No dia em que o conheci de perto e me levou a neta, apesar de tolhidas por um inexplicável mau estar inicial - havia três meses que não nos víamos - depressa nos recuperámos e  entrámos de brincar com os meus brinquedos, aqueles que guardava para brincar só com ela e que a interessavam demais enquanto eu imperturbável. Arrastámos a caixa de brinquedos de debaixo da cama de meus pais (era a caixa do último chapéu de meu pai), pegámos-lhe a meias e trouxemo-la para o ar livre. Ali, retirámos mesinhas, cadeiras, pratos, talheres e chávenas, ferro de engomar, tábua e mais. Retirei e emprestei-lhe o meu boneco de casquinha que poupava a abusos e conservava na sua caixa de origem sempre envolto em duas dobras de papel de seda que funcionavam como portada de janela e eu abria só para espreitá-lo na sua caminha de alvo papel a imitar palhinhas de presépio. O boneco era um presente da minha madrinha verdadeira, pessoa muito dos meus encantos. E também constituía o supremo enlevo de Lídia. Gostávamos dele por ser masculino, ao invés de todo o mundo de bonecos que conhecíamos. Além disso, não era bebé, era mesmo um garoto, talvez um pouco mais velho que nós.  
Anos mais tarde, vim a descobri-lo num rapaz da mocidade portuguesa que estava numa missa, bem direito e penteado, lindo de morrer, tal qual o meu boneco, calções, camisa e um bonezito meio militar que só lhe dava mais encanto e que o boneco também trazia pronto a usar, num canto da caixa. Diferente, só tinha mesmo a  bandeira que empunhava. Tremi de novidade e constatei, ponto a ponto, a fazer comparações de cabeça, que o meu boneco era o seu retrato exactíssimo. Deu-me até vontade de lhe contar, mas decerto não acreditaria em mim e nem me ligava nenhuma. Portanto, limitei-me à identidade silenciosa que nunca partilhei com Lídia, a essa altura já a desmemoriar de nós crianças, tal o desprendimento com que me presenteava. Que aos sete anos eu faria previsível se tivesse ligado sinais. Mas se a vida me fez boa a intuí-los, pouco me ajudou a acertar nas ligações. 

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