Numa
cortesia principesca, Laurentino, altíssimo e muito direito, guiou a velhota
degraus acima e foi sentá-la no interior da igreja, os convidados a assentir de
cabeça, olhos em discurso directo, sim senhor, é um homem como deve ser. E eu desejosa de ver a noiva, a ficar para
trás contrariada, a madrinha notando-me o fincapé, se não te afastares, podes
ficar aí à porta, vens ter comigo depois. E eu, a desmanchar em sorrisos,
fiquei.
Estava
fazendo os meus mitetes de rodar a saia a ver se alguém me reparava ou deitava
um olhinho quando, num gargarejo de bom motor, quase silencioso, chegou um
carro esquisito que me pareceu cor de café com leite, rabo esticado qual peixe. Extravagantemente bonito. E as pessoas que saíram
não me entusiasmaram menos. Na surpresa geral, fez-se silêncio por contágio. Eu,
esquecida da vaidade a precisar de palmas; a galeria, sem palavras.
Embasbacámos todos. Saiu do anfíbio um senhor de fato
e gravata e de que só lembro o aprumo e as mãos de dedos compridos. Uma senhora que me
pareceu extraordinária por três ou quatro pormenores para mim de relêvo, usava
um chapeuzinho com rede, lábios pintados de cor de laranja, andava de saltos
altos como eu saltava à corda, e calçava luvas. O tempo havia de confirmar a
impressão: era uma mulher bonita. E do banco traseiro desceu uma garota mais ou
menos da minha idade. Quando a vi fora do automóvel bateu-me de chofre o inconcebível
da minha vaidade, senti a triste distância entre o conforto desafogado e a
nossa penúria engravatada. A diferença não se resumia à indumentária.
Bastava olhá-la e tínhamos certeza de que pertencia a outra escala, uma escala com
diferentes unidades de leitura. Não que fosse vulcânica como Lídia que era das
nossas e por vezes entrava em irrupção de lava inesperada e outras se afirmava submissa
e pacífica. Aquela garota divergia. Olhei as crianças que por ali cirandavam,
umas gordas, outras magras. Ela não. Havia proporção e harmonia na sua figura
nem gorda nem magra. As nossas mães levantavam saias a exibir-nos as coxas, olha-me este pernão; ou o inverso, não come, é uma trinca espinhas, só
tem é ossos; depois, alçavam-nos as camisolas e, mostra lá. E a caixa torácica
aparecia-nos desenhada sob a pele. Ou o contrário, já viste, tão novinha e já
traz ali umas maminhas a apontar. E, gordas ou magras, tínhamos de aguentar-nos
à observação que nos vexava. Mas observava-se aquela menina e todos os
ossos tinham a camada de carne certa. Ela não tinha os joelhos escarolados como
alguns de nós, os pulsos fininhos onde nenhuma pulseira servia e era preciso
dar-lhe mil nós a toda a volta para que não deslizasse mão fora; não havia um pernão sob as saias armadas com
saiotes de renda que lhe despontavam em brancura aos bicos. Aquela menina não
tinha maminhas de gordura, botões precoces que mães orgulhosas e ignorantes exibiam; por certo, ninguém lhe apontava as carnes num
sentimento de vaidade brejeira que nunca entendi na maior parte de mães e avós.
A
garota trazia luvinhas de renda, um chapeuzito de veludo, fitas e laços de
veludo semeados com gosto pelo vestido de princesa que não faria má figura ao
lado do bigodinho fino do senhor Laurentino. Mas sobretudo invejei-lhe a desenvoltura e simpatia naturais que hoje julgo duas qualidades que pouco têm
de natural. Nessa manhã de sol, Maria Rita surgiu-me perfeita. Mais perfeita
que Lídia. Mas nunca eu saberia aproximar-me dela. A medida da sua perfeição
esticava a minha distância.
Mal
o trio se perdeu no interior da igreja, as conversas ritmaram, gente tão fina
ia lá ficar aqui fora à espera, ficamos sem saber se são da parte da noiva ou
do noivo, mas a soalheira não é para aquela raça de gente, ainda apanhavam a
pneumónica. E patati e patatá. Tive ganas de me juntar à madrinha só para
observar em que banco estavam sentados, se estariam muito longe de nós, os olhar
com vagar mesmo que estivessem de costas. Mas entretanto ouvira uma mulher afobada,
arranjando o lenço que lhe descaía da cabeça, a garantir pela sua saúde que a noiva
já tinha saído e não tardava a assomar. Portanto, fiquei. A noiva era o meu
motivo, não queria perdê-la.
Estava
eu apurando o ouvido para um zumbido de automóvel quando senti uma mãozinha pequena a cutucar a minha. E era aquela menina desnomeada a sorrir-me, a
minha mãe disse que podia ficar ao pé de ti e ir ver a noiva contigo. E antes
que eu me refizesse, um carro entrou bem devagar no adro, a nuvem
branca pousada no banco traseiro. Pelo despovoamento que ocorreu, tive certeza:
era a noiva. E fomos as duas a rir e a correr até ao carro que parava e logo um
círculo de gente a rodeá-lo, as cabeças todas atiradas para a frente como árvores
fustigadas por vento forte. E nós rindo, a furar por entre o aperto de pernas e
braços.
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