sábado, 5 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Numa cortesia principesca, Laurentino, altíssimo e muito direito, guiou a velhota degraus acima e foi sentá-la no interior da igreja, os convidados a assentir de cabeça, olhos em discurso directo, sim senhor, é um homem como deve ser.  E eu desejosa de ver a noiva, a ficar para trás contrariada, a madrinha notando-me o fincapé, se não te afastares, podes ficar aí à porta, vens ter comigo depois. E eu, a desmanchar em sorrisos, fiquei.
Estava fazendo os meus mitetes de rodar a saia a ver se alguém me reparava ou deitava um olhinho quando, num gargarejo de bom motor, quase silencioso, chegou um carro esquisito que me pareceu cor de café com leite, rabo esticado qual peixe. Extravagantemente bonito. E as pessoas que saíram não me entusiasmaram menos. Na surpresa geral, fez-se silêncio por contágio. Eu, esquecida da vaidade a precisar de palmas; a galeria, sem palavras. Embasbacámos todos.  Saiu do anfíbio um senhor de fato e gravata e de que só lembro o aprumo e as mãos de dedos compridos. Uma senhora que me pareceu extraordinária por três ou quatro pormenores para mim de relêvo, usava um chapeuzinho com rede, lábios pintados de cor de laranja, andava de saltos altos como eu saltava à corda, e calçava luvas. O tempo havia de confirmar a impressão: era uma mulher bonita. E do banco traseiro desceu uma garota mais ou menos da minha idade. Quando a vi fora do automóvel bateu-me de chofre o inconcebível da minha vaidade, senti a triste distância entre o conforto desafogado e a nossa penúria engravatada. A diferença não se resumia à indumentária. Bastava olhá-la e tínhamos certeza de que pertencia a outra escala, uma escala com diferentes unidades de leitura. Não que fosse vulcânica como Lídia que era das nossas e por vezes entrava em irrupção de lava inesperada e outras se afirmava submissa e pacífica. Aquela garota divergia. Olhei as crianças que por ali cirandavam, umas gordas, outras magras. Ela não. Havia proporção e harmonia na sua figura nem gorda nem magra. As nossas mães levantavam saias a exibir-nos as coxas, olha-me este pernão; ou o inverso, não come, é uma trinca espinhas, só tem é ossos; depois, alçavam-nos as camisolas e, mostra lá. E a caixa torácica aparecia-nos desenhada sob a pele. Ou o contrário, já viste, tão novinha e já traz ali umas maminhas a apontar. E, gordas ou magras, tínhamos de aguentar-nos à observação que nos vexava. Mas observava-se aquela menina e todos os ossos tinham a camada de carne certa. Ela não tinha os joelhos escarolados como alguns de nós, os pulsos fininhos onde nenhuma pulseira servia e era preciso dar-lhe mil nós a toda a volta para que não deslizasse mão fora;  não havia um pernão sob as saias armadas com saiotes de renda que lhe despontavam em brancura aos bicos. Aquela menina não tinha maminhas de gordura, botões precoces que mães orgulhosas e ignorantes exibiam; por certo, ninguém lhe apontava as carnes num sentimento de vaidade brejeira que nunca entendi na maior parte  de mães e avós.
A garota trazia luvinhas de renda, um chapeuzito de veludo, fitas e laços de veludo semeados com gosto pelo vestido de princesa que não faria má figura ao lado do bigodinho fino do senhor Laurentino. Mas sobretudo invejei-lhe a desenvoltura e simpatia naturais que hoje julgo duas qualidades que pouco têm de natural. Nessa manhã de sol, Maria Rita surgiu-me perfeita. Mais perfeita que Lídia. Mas nunca eu saberia aproximar-me dela. A medida da sua perfeição esticava a minha distância.
Mal o trio se perdeu no interior da igreja, as conversas ritmaram, gente tão fina ia lá ficar aqui fora à espera, ficamos sem saber se são da parte da noiva ou do noivo, mas a soalheira não é para aquela raça de gente, ainda apanhavam a pneumónica. E patati e patatá. Tive ganas de me juntar à madrinha só para observar em que banco estavam sentados, se estariam muito longe de nós, os olhar com vagar mesmo que estivessem de costas. Mas entretanto ouvira uma mulher afobada, arranjando o lenço que lhe descaía da cabeça, a garantir pela sua saúde que a noiva já tinha saído e não tardava a assomar. Portanto, fiquei. A noiva era o meu motivo, não queria perdê-la.

Estava eu apurando o ouvido para um zumbido de  automóvel quando senti uma mãozinha pequena a cutucar a minha. E era aquela menina desnomeada a sorrir-me, a minha mãe disse que podia ficar ao pé de ti e ir ver a noiva contigo. E antes que eu me refizesse, um carro entrou bem devagar no adro, a nuvem branca pousada no banco traseiro. Pelo despovoamento que ocorreu, tive certeza: era a noiva. E fomos as duas a rir e a correr até ao carro que parava e logo um círculo de gente a rodeá-lo, as cabeças todas atiradas para a frente como árvores fustigadas por vento forte. E nós rindo, a furar por entre o aperto de pernas e braços. 

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