Regressada ao ninho, marinei de enlevo no caldo morno do hábito e madrinha Carmelita foi-se transformando em
espaçosa iguaria que me chegava em lonjura de saudade e eflúveos de gasóleo, as
pernas cada vez mais trôpegas a hesitar na altura de degraus temerosos. Depois de minha mãe me atravessar a estrada
num “vai agora” que me alava, eu pousava de leve na paragem e ficava a observá-la
enredada nos caprichos da carreira que resfolegava impaciências e ma entregava
embrulhada em novidade, partindo a arrastar rodas por má vontade e birra de
motor, no inconfessado desejo de ficar
connosco a lanchar fatias douradas.
. Quando corri a casa do
Luís, ele abriu um sorriso de orelha a orelha, os olhos agarrados à minha
pessoa. Durante uns dias nem se importou de brincar comigo às escolas alternando
de aluno a professor, cópias e ditados escritos a carvão no poste da luz que
beirava a minha porta. Uns palmos acima das nossas cabeças, na lateral do
poste, o letreiro perigo-danger com uma caveira de tíbias cruzadas a
desimaginar aventuras. E toda a gente nos avisava com olhos de caso, peremptória, não podem
passar dali senão morrem, brinquem só aqui em baixo. Nos acessos de enjoo e
maldade, o Luís, farto do regime escolar e de mim, atirava o nosso giz preto que
batia escarninho bem acima da caveira, ploc, e dizia com partículas malévolas a
assomar por entre os espaços das palavras, tás a ver sua medricas, não acontece
nada. E partia sem mais, a treinar o assobio, mãos enfiadas nos bolsos dos calções. E eu,
abstracta e sem discurso, ficava a ver-lhe as costas a desaparecer no meio das
árvores. De outras vezes, mal apagava “o nosso quadro”, o meu amigo atirava o
trapo ao chão e trepava com esforço pela lisura do poste. Parava acima do
letreiro a provocar-me, tronco obtuso e pernas enganchadas na coluna, braços
abertos, não morri, não morri, não morri. No susto de tamanha insurreição,
imaginando-o à beirinha dos proféticos cataclismos, as pessoas ficam todas
queimadinhas, pretas como um tiço, nem se conhecem, é um carvão só, eu
galgava até onde houvesse gente e abria
uma sirene atabalhoada de pressas, a repetir sem descanso, ele passou o
perigo-danger e vai morrer, ele passou o perigo-danger e vai morrer. Mas quando
nos aproximávamos o poste estava solitário e tudo no lugar. Na sequência destas
e de outras avarias o Luís desaparecia-me por uns dias. Depois, voltava como
partira e brincávamos a outra coisa, esquecidos os dois da tempestade. Por
vezes, aproximava-se devagar, uma cenoura ou um nabo na mão ainda enterreados,
queres, estavam lá na cozinha. Se eu aceitava (não gostava muito de nabos), íamos
lavá-los com a água que tirava do poço, só um fundo de caldeiro que não podia
com mais, eu no terrível fascínio da fundura onde as avencas acenavam verdes alegrias, e ele a desviar-me com o braço em manobras de adulto feito à pressa, sai, sai,
que só empatas e podes cair. Depois trazia o caldeiro esforçado até ao bordo. E
ali o deixava. Enquanto eu abria mãos em concha, ele deitava-lhes os legumes
e, de caldeiro em punho, escorria a água em fio. Logo de seguida, repartíamos
os nossos haveres. Algumas vezes, a mãe espreitava-o, esperava um pouco e
apanhava-o de surpresa, concentrado na operação de lavagem. Aproximava-se
silenciosa e mal o ganfava desatava às porradas e incendiava-nos de gritos, meu
desgraçado, só estragas o que eu ando a fazer, quem é que te deu ordem para
arrancares as cenouras, tu não vês que as coisas ainda não estão feitas, e
assentava-lhe as mãos a eito pelo corpo, acabando a arrastá-lo por uma orelha até casa. Nessas
fúrias de tormentosa veêmencia, eu era invisível e o Luís, que se contorcia de
dor mas nunca vi chorar, como que deixava de ser seu filho. Punia o invasor
dos canteiros de hortaliça de que apurava crescenças e formusuras em arroubos de família.
Entendi que o garoto mentia e ia à horta da mãe roubar os legumes arriscando uma
sova em cada vez. A pena das pancadas que caíam sobre o meu amigo afinou-me nas
papilas gustativas, os legumes passaram a insípidos e repelia-os com vigor.
Mas o Luís continuou a furtá-los à socapa apesar dos meus avisos de piedade egocêntrica e
moralista, se a tua mãe vê não nos deixa brincar e bate-te. E ele às dentadas
às cenouras, imitando um coelho a mexer o nariz, se quiseres trago-te um torrão
de açúcar amarelo do açucareiro, vou lá numa corrida, queres? Dele inteiro me vinha o superior grau de certeza a que só
a infância acede, a confiança de sermos ambos
eternos. Vivíamos um estado de “para sempre”, como todo o presente infantil.
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