quarta-feira, 9 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Regressada ao ninho, marinei de enlevo no caldo morno do hábito e  madrinha Carmelita foi-se transformando em espaçosa iguaria que me chegava em lonjura de saudade e eflúveos de gasóleo, as pernas cada vez mais trôpegas a hesitar na altura de degraus temerosos.  Depois de minha mãe me atravessar a estrada num “vai agora” que me alava, eu pousava de leve na paragem e ficava a observá-la enredada nos caprichos da carreira que resfolegava impaciências e ma entregava embrulhada em novidade, partindo a arrastar rodas por má vontade e birra de motor, no inconfessado desejo de  ficar connosco a lanchar fatias douradas. 
 . Quando corri a casa do Luís, ele abriu um sorriso de orelha a orelha, os olhos agarrados à minha pessoa. Durante uns dias nem se importou de brincar comigo às escolas alternando de aluno a professor, cópias e ditados escritos a carvão no poste da luz que beirava a minha porta. Uns palmos acima das nossas cabeças, na lateral do poste, o letreiro perigo-danger com uma caveira de tíbias cruzadas a desimaginar aventuras. E toda a gente nos avisava  com olhos de caso, peremptória, não podem passar dali senão morrem, brinquem só aqui em baixo. Nos acessos de enjoo e maldade, o Luís, farto do regime escolar e de mim, atirava o nosso giz preto que batia escarninho bem acima da caveira, ploc, e dizia com partículas malévolas a assomar por entre os espaços das palavras, tás a ver sua medricas, não acontece nada. E partia sem mais, a treinar o assobio, mãos enfiadas nos bolsos dos calções. E eu, abstracta e sem discurso, ficava a ver-lhe as costas a desaparecer no meio das árvores. De outras vezes, mal apagava “o nosso quadro”, o meu amigo atirava o trapo ao chão e trepava com esforço pela lisura do poste. Parava acima do letreiro a provocar-me, tronco obtuso e pernas enganchadas na coluna, braços abertos, não morri, não morri, não morri. No susto de tamanha insurreição, imaginando-o à beirinha dos proféticos cataclismos, as pessoas ficam todas queimadinhas, pretas como um tiço, nem se conhecem, é um carvão só, eu galgava  até onde houvesse gente e abria uma sirene atabalhoada de pressas, a repetir sem descanso, ele passou o perigo-danger e vai morrer, ele passou o perigo-danger e vai morrer. Mas quando nos aproximávamos o poste estava solitário e tudo no lugar. Na sequência destas e de outras avarias o Luís desaparecia-me por uns dias. Depois, voltava como partira e brincávamos a outra coisa, esquecidos os dois da tempestade. Por vezes, aproximava-se devagar, uma cenoura ou um nabo na mão ainda enterreados, queres, estavam lá na cozinha. Se eu aceitava (não gostava muito de nabos), íamos lavá-los com a água que tirava do poço, só um fundo de caldeiro que não podia com mais, eu no terrível fascínio da fundura onde as avencas acenavam verdes alegrias, e ele a desviar-me com o braço em manobras de adulto feito à pressa, sai, sai, que só empatas e podes cair. Depois trazia o caldeiro esforçado até ao bordo. E ali o deixava. Enquanto eu abria mãos em concha, ele deitava-lhes os legumes e, de caldeiro em punho, escorria a água em fio. Logo de seguida, repartíamos os nossos haveres. Algumas vezes, a mãe espreitava-o, esperava um pouco e apanhava-o de surpresa, concentrado na operação de lavagem. Aproximava-se silenciosa e mal o ganfava desatava às porradas e incendiava-nos de gritos, meu desgraçado, só estragas o que eu ando a fazer, quem é que te deu ordem para arrancares as cenouras, tu não vês que as coisas ainda não estão feitas, e assentava-lhe as mãos a eito pelo corpo, acabando a  arrastá-lo por uma orelha até casa. Nessas fúrias de  tormentosa veêmencia, eu era invisível e o Luís, que se contorcia de dor mas nunca vi chorar, como que deixava de ser seu filho. Punia o invasor dos canteiros de hortaliça de que apurava  crescenças e formusuras em arroubos de família. Entendi que o garoto mentia e ia à horta da mãe roubar os legumes arriscando uma sova em cada vez. A pena das pancadas que caíam sobre o meu amigo afinou-me nas papilas gustativas, os legumes passaram a insípidos e repelia-os com vigor. Mas o Luís continuou a furtá-los à socapa apesar dos meus avisos de piedade egocêntrica e moralista, se a tua mãe vê não nos deixa brincar e bate-te. E ele às dentadas às cenouras, imitando um coelho a mexer o nariz, se quiseres trago-te um torrão de açúcar amarelo do açucareiro, vou lá numa corrida, queres? Dele inteiro me vinha o superior  grau de certeza a que só a  infância acede, a confiança de sermos ambos eternos. Vivíamos um estado de “para sempre”, como todo o  presente infantil.

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