Brincámos
ao de sempre, mas alguma coisa mudara em Lídia. Talvez em mim. Ou em nós, essa
entidade abstracta, tecida em cordas de atracção e dever, que nos aponta e mistura aos outros. Mau grado a saudade que
lhe sentia a desfazer nos objectos invejados, ela brincava diferente, os gestos
desprendiam uma pressa nova, aqui e ali,
uma mancha de desinteresse. De espaço a espaço, interrompia a brincadeira que
antes a encantava, subia o valado onde o avô se sentara em solilóquio com os
animais, e exibia-se para mim correndo acima e abaixo sem descanso. Eu ia até
ela e imitava-a até que, cansadas, voltávamos para as miniaturas. Bebíamos chá que
não havia esticando muito o dedo mínimo, a comer bolinhos de terra amassada
com água em enfática mastigação de boca fechada, cerimonial que julgávamos
próprio de gente rica e que observáramos à professora. Estranhei-a. A
minha amiga estava comigo, mas alguma coisa lhe interessava mais que eu; por
vezes, pegava no boneco de casquinha, vou passeá-lo, e afastava-se de mim
propositada a esticar o braço e pôr-me a distância, não tens nada que vir atrás
de mim, agora eu é que sou a mãe e tomo conta. Eu agachava junto dos outros
brinquedos, num interesse falso e a pensar com desgosto que preferia a
companhia dos rapazes vizinhos e correr com eles de gancho no arco que já
dominava na perfeição, do que ocupar-me com jantarinhos de ervas e varrer o chão
de casinhas que, mal um toque, esboroavam os muros de terra misturando cozinha com sala, pátio com quartos. Olhava-a de soslaio enquanto se afastava até ao
extremo da nossa terra e reparava-a que tempos sentada no muro. Depois, voltava ainda mais mal humorada. Uma das vezes, deu-se pressa em guardar o boneco,
arrumou tudo na caixa dos chapéus sem consulta e atirou-me
displicente, já brincámos muito, vou-me embora. E foi mesmo. Sem esperar pelo
avô ou lançar um anzol de promessas. Arrumei a caixa e fiquei tão desanimada
que contei o caso a minha mãe. Ela ouviu e disse, vai lá buscar a caixa, filha,
e vê se estão todos os brinquedos. E quando os observei um a
um, cresceu-me nos olhos o desastre do boneco: acima do meio sorriso, uma racha profunda ao longo da testa morria nariz abaixo e exibia a sua fatalidade perecível. Era ferida sem sangue, mas
doeu-me mais do que quando ela, sem pedir, tomava para si brinquedos que eram brinde de farinha amparo ou predilecta e eu
tinha repetidos, que lhe daria se mos pedisse ou nela adivinhasse o desejo da posse; e outras desimportâncias que surripiava. Mais tarde, o Luís fazia a devolução parcial, puxando-as do fundo dos bolsos num sorriso, também lhe roubei.
Doeu-me a casquinha vandalizada. Porém, a fundura do golpe foi outra: ela sabia que era o único brinquedo que eu preservava e nem sequer me avisara. Ainda desconheço se o fez de propósito ou por distracção, jamais admitiu ter sido ela
a causa do lanho.
Entretanto, parecia apostada em ignorar-me e não perdia a oportunidade de dar enfâse à distância. No caminho para a mercearia, passava junto a minha casa sempre do lado oposto da estrada nacional, olhando para a direita quando eu vivia do lado esquerdo e o inverso. No primeiro dia em que passou fez ouvidos moucos à minha insistência vocal; magoada, restringi-me à linguagem do olhar. Via-lhe os caracóis desalinhados e o narizito empinado no desgosto de saber que seguia caminho sem mim, imperturbável. Desconcertada, queixava-me a Luís e ele sorria misterioso e sem resposta ou acrescentava, não penses nisso, vamos dar um passeio até à linha do comboio com outros gaiatos, pede lá à tua mãe. E esquecíamos tudo. Éramos só quatro ou cinco crianças a descobrir tesouros tão importantes como os restos mortais de uma pasta dentífrica que pensávamos ser creme, esburgávamos à dentada para nos besuntarmos e depois nos fazia borbulhas, um risco vermelho por todas as partes da cara onde passara. Só o recomeço das aulas nos voltou a juntar.
Entretanto, parecia apostada em ignorar-me e não perdia a oportunidade de dar enfâse à distância. No caminho para a mercearia, passava junto a minha casa sempre do lado oposto da estrada nacional, olhando para a direita quando eu vivia do lado esquerdo e o inverso. No primeiro dia em que passou fez ouvidos moucos à minha insistência vocal; magoada, restringi-me à linguagem do olhar. Via-lhe os caracóis desalinhados e o narizito empinado no desgosto de saber que seguia caminho sem mim, imperturbável. Desconcertada, queixava-me a Luís e ele sorria misterioso e sem resposta ou acrescentava, não penses nisso, vamos dar um passeio até à linha do comboio com outros gaiatos, pede lá à tua mãe. E esquecíamos tudo. Éramos só quatro ou cinco crianças a descobrir tesouros tão importantes como os restos mortais de uma pasta dentífrica que pensávamos ser creme, esburgávamos à dentada para nos besuntarmos e depois nos fazia borbulhas, um risco vermelho por todas as partes da cara onde passara. Só o recomeço das aulas nos voltou a juntar.
O
dia sete de Outubro foi rotundo em novidades. As minhas começaram ao
vestir da bata: encurtara em todas as extremidades. Sob ela, as saias faziam barra. Portanto, eu
crescera. Indiferente aos lamentos de minha mãe que antevia gastos em bata nova, parti para a escola toda contente dos centímetros a mais, na
esperança de que a professora me notasse. Depois, o caminho também sofreu
alteração, acompanhei com o Luís. Ainda minha mãe me penteava o cabelo da trança, quando Lídia passara entrosada num grupo de gaiatos da quarta classe que eu
conhecia pouco. Mas o maior desconcerto foi a professora. Quando parou o carro
vermelho e ela saiu desembaraçada e jovem, jovem, ficámos boquiabertos de
espanto, dolorosos da perda, mas esperançados naquele pedaço de mulher que
nesse ano ia tomar a seu cargo as quatro classes, os mais velhos às cotoveladas
uns aos outros, quinze e dezasseis anos a pular de hormonas. Ela subiu os
degraus em passo nervoso e tic tic de saltos, não sorriu, mostrou uma régua
grossa e disse a olhar lá para trás onde a altura campeava, espaçando frases com as pedras duras dos olhos, comigo não se
brinca. Quem não fizer o que digo, apanha com esta régua. E agora vamos entrar
que já estou atrasada e tenho mais uns avisos a fazer. Instalou-se uma morte
silenciosa, os olhos de algumas garotas marejaram, eu apertei a mão de Lídia. A
professora antes de entrarmos, numa observação de escândalo, a forma está toda
errada. Olhou para nós duas, vocês não podem ficar juntas, tu, anda cá, e
pôs-me atrás de Lídia a dar a mão a uma garota sorridente, cara redonda que
fazia covinhas ao rir. Ao lado da minha amiga colocou uma menina da primeira classe, bem pequenina. Olhei-lhes as cabeças e constatei: eram da
mesma altura. Senti-me melhor. Arrumados em escada, entrámos.
Hoje sei que todos éramos medrosos.
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