sábado, 12 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Brincámos ao de sempre, mas alguma coisa mudara em Lídia. Talvez em mim. Ou em nós, essa entidade abstracta, tecida em cordas de atracção e dever, que nos aponta e mistura aos outros. Mau grado a saudade que lhe sentia a desfazer nos objectos invejados, ela brincava diferente, os gestos desprendiam uma pressa nova,  aqui e ali, uma mancha de desinteresse. De espaço a espaço, interrompia a brincadeira que antes a encantava, subia o valado onde o avô se sentara em solilóquio com os animais, e exibia-se para mim correndo acima e abaixo sem descanso. Eu ia até ela e imitava-a até que, cansadas, voltávamos para as miniaturas. Bebíamos chá que não havia esticando muito o dedo mínimo, a comer bolinhos de terra amassada com água em enfática mastigação de boca fechada, cerimonial que julgávamos próprio de gente rica e que observáramos à professora. Estranhei-a. A minha amiga estava comigo, mas alguma coisa lhe interessava mais que eu; por vezes, pegava no boneco de casquinha, vou passeá-lo, e afastava-se de mim propositada a esticar o braço e pôr-me a distância, não tens nada que vir atrás de mim, agora eu é que sou a mãe e tomo conta. Eu agachava junto dos outros brinquedos, num interesse falso e a pensar com desgosto que preferia a companhia dos rapazes vizinhos e correr com eles de gancho no arco que já dominava na perfeição, do que ocupar-me com jantarinhos de ervas e varrer o chão de casinhas que, mal um toque,  esboroavam os muros de terra misturando cozinha com sala, pátio com quartos. Olhava-a de soslaio enquanto se afastava até ao extremo da nossa terra e reparava-a que tempos sentada no muro. Depois, voltava ainda mais mal humorada. Uma das vezes, deu-se  pressa em guardar o boneco, arrumou tudo na caixa dos chapéus sem consulta e atirou-me displicente, já brincámos muito, vou-me embora. E foi mesmo. Sem esperar pelo avô ou lançar um anzol de promessas. Arrumei a caixa e fiquei tão desanimada que contei o caso a minha mãe. Ela ouviu e disse, vai lá buscar a caixa, filha, e vê se estão todos os brinquedos. E quando os observei um a um, cresceu-me nos olhos o desastre do boneco: acima do meio sorriso, uma racha profunda ao longo da testa morria nariz abaixo e exibia a sua fatalidade perecível. Era ferida sem sangue, mas doeu-me mais do que quando ela, sem pedir, tomava para si brinquedos que eram brinde de farinha amparo ou predilecta e eu tinha repetidos, que lhe daria se mos pedisse ou nela adivinhasse o desejo da posse; e outras desimportâncias que surripiava. Mais tarde, o Luís fazia a devolução parcial, puxando-as do fundo dos bolsos num sorriso, também lhe roubei. Doeu-me a casquinha vandalizada. Porém, a fundura do golpe foi outra: ela sabia que era o único brinquedo que eu preservava e nem sequer me avisara. Ainda desconheço se o fez de propósito ou por distracção, jamais admitiu ter sido ela a causa do lanho. 
         Entretanto, parecia apostada em ignorar-me e não perdia a oportunidade de dar enfâse à distância. No caminho para a mercearia, passava junto a minha casa sempre do lado oposto da estrada nacional, olhando para a direita quando eu vivia do lado esquerdo e o inverso. No primeiro dia em que passou fez ouvidos moucos à minha insistência vocal; magoada, restringi-me à linguagem do olhar.  Via-lhe os caracóis desalinhados e o narizito empinado no desgosto de saber que seguia caminho sem mim, imperturbável. Desconcertada, queixava-me a Luís e ele sorria misterioso e sem resposta ou acrescentava, não penses nisso, vamos dar um passeio até à linha do comboio com outros gaiatos, pede lá à tua mãe. E esquecíamos tudo. Éramos só quatro ou cinco crianças a descobrir tesouros tão importantes como os restos mortais de uma pasta dentífrica que pensávamos ser creme, esburgávamos à dentada para nos besuntarmos e depois nos fazia borbulhas, um risco vermelho por todas as partes da cara onde passara. Só o recomeço das aulas nos voltou a juntar.


            O dia sete de Outubro foi rotundo em novidades. As minhas começaram ao vestir da bata: encurtara em todas as extremidades. Sob ela, as saias faziam barra. Portanto, eu crescera. Indiferente aos lamentos de minha mãe que antevia gastos em bata nova, parti para a escola toda contente dos centímetros a mais, na esperança de que a professora me notasse. Depois, o caminho também sofreu alteração, acompanhei com o Luís. Ainda minha mãe me penteava o cabelo da trança, quando Lídia passara  entrosada num grupo de gaiatos da quarta classe que eu conhecia pouco. Mas o maior desconcerto foi a professora. Quando parou o carro vermelho e ela saiu desembaraçada e jovem, jovem, ficámos boquiabertos de espanto, dolorosos da perda, mas esperançados naquele pedaço de mulher que nesse ano ia tomar a seu cargo as quatro classes, os mais velhos às cotoveladas uns aos outros, quinze e dezasseis anos a pular de hormonas. Ela subiu os degraus em passo nervoso e tic tic de saltos, não sorriu, mostrou uma régua grossa e disse a olhar lá para trás onde a altura campeava, espaçando frases com as pedras duras dos olhos, comigo não se brinca. Quem não fizer o que digo, apanha com esta régua. E agora vamos entrar que já estou atrasada e tenho mais uns avisos a fazer. Instalou-se uma morte silenciosa, os olhos de algumas garotas marejaram, eu apertei a mão de Lídia. A professora antes de entrarmos, numa observação de escândalo, a forma está toda errada. Olhou para nós duas, vocês não podem ficar juntas, tu, anda cá, e pôs-me atrás de Lídia a dar a mão a uma garota sorridente, cara redonda que fazia covinhas ao rir. Ao lado da minha amiga colocou uma menina da primeira classe, bem pequenina. Olhei-lhes as cabeças e constatei: eram da mesma altura. Senti-me melhor. Arrumados em escada, entrámos. Hoje sei que todos éramos medrosos.

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