Ir
ao cinema foi sempre uma festa para mim que cresci num lugar sem ele. Festa
rara, portanto. Por questão de temperamento, o mundo de faz de conta entra por
mim afora em facilidade desmedida: leitura, cinema, uma conversa sincera, deixam-me
satisfeita, são-me gelado em dia a escaldar ou bebida quente em tempo frio. Apesar
das diferenças entre elas, usufruo pouco das três, o que me faz gostar mais de
cada uma, gozá-las quase perdidamente. E sim, as conversas têm esse ar de
fantasia, a gente fala mais sobre o que pensa das coisas, pessoas e situações do
que sobre elas mesmas. Fantasia em conjunto, digamos.
Um
destes dias fui ao cinema, facto que me começa no primordial instante
de decisão. Porém, às vezes atraso-me a decidir e chego à sala a levantar muito
os pés – foi o caso – por não conseguir pensar naquelas luzinhas incrustadas a
indicar os degraus senão como lâmpadas redondas que temo partir em mil
vidrinhos. Subo em cuidados, sempre a ouvir aquele vidro fino a espartiçar e
quando me sento dou graças a Deus por não ter pisado nenhum. A cadeira do cinema
é o meu porto de salvamento e nem ela sabe o tamanho da minha gratidão. Por
duas horas fico ali a pesar-lhe sem dar conta, debaixo da água do filme, num
mergulho encarpado e quase sempre impecável. Desta vez fui para Maggie Smith
ela mesma. Sem arrependimentos, é uma actriz como manda a sapatilha. Não é
um filme empolgante, mas é um filme inglês com sua fleuma; seu humor meio negro-meio sarcástico, fino; um personagem que se divide em dois, um é o escritor e
outro o homem; e Maggie a ser ela mesma numa versão pobre e, para o meu gosto, com traços de miséria lastimável. Lamento mesmo, mas tanto saco plástico cheio
de merdice deu-me um bocado de má disposição, até por extravasar em alguns
bocadinhos do filme. À parte isso e o cheiro que se imagina – e a imaginação
quando quer é mesmo pérfida –, aquele quotidiano de uma velha razinza que não
agradece e pede como quem exige, tem o seu interesse. Sobretudo pela comparação
com a velhice da mãe do escritor, uma senhora asseada, com os seus óculos e
camisas de laço (vou tirar os laços às minhas já que os óculos não posso abolir),
que termina num lar de idosos, desmemoriada. E as duas velhices,
ainda que longe uma da outra, vão sendo cotejadas. Ora bem, aqui é que bate o
ponto. O escritor aguenta quinze anos a van de Maggie à sua porta, mas não
aguenta a mãe por muito tempo, nunca pensa em tê-la em casa e quando a senhora
ainda está no seu inteiro juízo e o visita, gasta-se a mandá-la embora. A
distância a que estamos das mães nunca parece suficiente. Ora Maggie não é mãe
dele, está-lhe à porta (o que em termos de distância pode fazer-se superior a
viver numa terra distante e vir intrometer-se em sua casa). Entretanto, escreve
sobre as duas e ele mesmo, e vai encenando e representando as suas peças de
teatro. Parece que, com algum êxito.
Julgo que o filme pretende dizer-nos
que uma velhice ocupada por
autodeterminação leva à longevidade que se deseja, com os traços mnésicos a
funcionar, vontade de viver qb, e etc. Acontece que não fiquei a invejar a
velhota. Achei supremamente idiota morar naquela espelunca de carrinha, não
tomar banho durante mais de quinze anos, fazer as necessidades para um saco
plástico que atira para debaixo da furgoneta, não limpar a casa de banho do
vizinho quando a usa. Enfim, este filme dá-nos um nico do “feios porcos e maus”,
no que toca à porcaria. Os sem abrigo que conheço não são assim. Mas talvez os
ingleses sejam, sabe-se lá. A senhora era um carácter insubmisso e pouco
sociável (nem a cunhada a tolerava), tinha sido freira e expulsa da ordem,
tinha estudado piano, o amor da sua vida foi mesmo a música que se recusava a
ouvir com grande lamuria. Para mim, o
que a conservou foi a mázura e a persistência em se assumir como o contrário do
que era. Papel que encarnou e levou a sério, sem quebras. Um trabalho
talvez árduo, a distraí-la da morte.
Bom, pelo meio ficou a culpa pelo
facto de ter atropelado um garoto e a sua fuga à polícia, bem como a comissão
que pagava ao ex guarda que a descobrira a abandonar o corpo. A memória tem
destes enredos selectivos, não esquece. Selecciona o que a vontade quer olvidar.
Agora o moralismo da história – e que
lá não está: quem sabe a senhora escolheu aquele caminho difícil como expiação
da culpa (o garoto é que foi culpado, mas pronto, ela encasquetou a culpa).
Esqueçam o parágrafo anterior. Ela
era assim: robustez de mau génio, porca até dizer chega, sábia de palavras e
contra argumentos irónicos; e foi isso que a aguentou. Banhada e limpa, breve
morreu. O vizinho, mesmo dividido em dois, era próximo à santidade. Fim.
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