sexta-feira, 25 de março de 2016

The Lady in the Van

Ir ao cinema foi sempre uma festa para mim que cresci num lugar sem ele. Festa rara, portanto. Por questão de temperamento, o mundo de faz de conta entra por mim afora em facilidade desmedida: leitura, cinema, uma conversa sincera, deixam-me satisfeita, são-me gelado em dia a escaldar ou bebida quente em tempo frio. Apesar das diferenças entre elas, usufruo pouco das três, o que me faz gostar mais de cada uma, gozá-las quase perdidamente. E sim, as conversas têm esse ar de fantasia, a gente fala mais sobre o que pensa das coisas, pessoas e situações do que sobre elas mesmas. Fantasia em conjunto, digamos.
Um destes dias fui ao cinema, facto que me começa no primordial instante de decisão. Porém, às vezes atraso-me a decidir e chego à sala a levantar muito os pés – foi o caso – por não conseguir pensar naquelas luzinhas incrustadas a indicar os degraus senão como lâmpadas redondas que temo partir em mil vidrinhos. Subo em cuidados, sempre a ouvir aquele vidro fino a espartiçar e quando me sento dou graças a Deus por não ter pisado nenhum. A cadeira do cinema é o meu porto de salvamento e nem ela sabe o tamanho da minha gratidão. Por duas horas fico ali a pesar-lhe sem dar conta, debaixo da água do filme, num mergulho encarpado e quase sempre impecável. Desta vez fui para Maggie Smith ela mesma. Sem arrependimentos, é uma actriz como manda a sapatilha. Não é um filme empolgante, mas é um filme inglês com sua fleuma; seu humor meio negro-meio sarcástico, fino; um personagem que se divide em dois, um é o escritor e outro o homem; e Maggie a ser ela mesma numa versão pobre e, para o meu gosto, com traços de miséria lastimável. Lamento mesmo, mas tanto saco plástico cheio de merdice deu-me um bocado de má disposição, até por extravasar em alguns bocadinhos do filme. À parte isso e o cheiro que se imagina – e a imaginação quando quer é mesmo pérfida –, aquele quotidiano de uma velha razinza que não agradece e pede como quem exige, tem o seu interesse. Sobretudo pela comparação com a velhice da mãe do escritor, uma senhora asseada, com os seus óculos e camisas de laço (vou tirar os laços às minhas já que os óculos não posso abolir), que termina num lar de idosos, desmemoriada. E as duas velhices, ainda que longe uma da outra, vão sendo cotejadas. Ora bem, aqui é que bate o ponto. O escritor aguenta quinze anos a van de Maggie à sua porta, mas não aguenta a mãe por muito tempo, nunca pensa em tê-la em casa e quando a senhora ainda está no seu inteiro juízo e o visita, gasta-se a mandá-la embora. A distância a que estamos das mães nunca parece suficiente. Ora Maggie não é mãe dele, está-lhe à porta (o que em termos de distância pode fazer-se superior a viver numa terra distante e vir intrometer-se em sua casa). Entretanto, escreve sobre as duas e ele mesmo, e vai encenando e representando as suas peças de teatro. Parece que, com algum êxito.
            Julgo que o filme pretende dizer-nos que uma velhice ocupada  por autodeterminação leva à longevidade que se deseja, com os traços mnésicos a funcionar, vontade de viver qb, e etc. Acontece que não fiquei a invejar a velhota. Achei supremamente idiota morar naquela espelunca de carrinha, não tomar banho durante mais de quinze anos, fazer as necessidades para um saco plástico que atira para debaixo da furgoneta, não limpar a casa de banho do vizinho quando a usa. Enfim, este filme dá-nos um nico do “feios porcos e maus”, no que toca à porcaria. Os sem abrigo que conheço não são assim. Mas talvez os ingleses sejam, sabe-se lá. A senhora era um carácter insubmisso e pouco sociável (nem a cunhada a tolerava), tinha sido freira e expulsa da ordem, tinha estudado piano, o amor da sua vida foi mesmo a música que se recusava a ouvir com grande lamuria. Para mim,  o que a conservou foi a mázura e a persistência em se assumir como o contrário do que era. Papel que encarnou e levou a sério, sem quebras. Um trabalho talvez árduo, a distraí-la da morte.
            Bom, pelo meio ficou a culpa pelo facto de ter atropelado um garoto e a sua fuga à polícia, bem como a comissão que pagava ao ex guarda que a descobrira a abandonar o corpo. A memória tem destes enredos selectivos, não esquece. Selecciona o que a vontade quer olvidar.
            Agora o moralismo da história – e que lá não está: quem sabe a senhora escolheu aquele caminho difícil como expiação da culpa (o garoto é que foi culpado, mas pronto, ela encasquetou a culpa).
            Esqueçam o parágrafo anterior. Ela era assim: robustez de mau génio, porca até dizer chega, sábia de palavras e contra argumentos irónicos; e foi isso que a aguentou. Banhada e limpa, breve morreu. O vizinho, mesmo dividido em dois, era próximo à santidade. Fim.


Sem comentários:

Enviar um comentário