quarta-feira, 16 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Certa tarde, andava eu rodando um arco desempoeirado à volta do monte, quando a irmã de Lídia passou a caminho da mercearia. Estaquei de rompante. Sem o apoio do arame, o arco cambaleou  e caiu na lateral enquanto, retida no espanto, observava a fugitiva regressada. Desfigurava em passo lento, a saia a empinar um imenso, muito mais curta à frente que atrás. Esquisitíssima de corpo. Entristeci no peso da mudança incompreensível, a memória a insistir na figura ligeira e juvenil. Recordei a costureira em volta de mim, boca cheia de alfinetes e mãos sábias nas dobras de tecido, as queixas a esgueirarem retorcidas por um cantinho dos lábios sem cor, ai esta menina empina tanto, tenho sempre que deixar a saia mais comprida à frente. Por isso, quis confirmação, ela empina não é? e minha mãe, traz um bebé na barriga. Eu incrédula, então Paris e a cegonha, mãe? E ela, filha, aquilo era só conversa do homem. Fiquei tão chocada que nem perguntei mais. Saí numa pressa, dei um grito ao Luís e ele assomou à esquina, saltei o valado entre as nossas casas e, ainda nem bem chegara, atirei escandalizada, a irmã da Lídia anda de barriga e vocês não me contaram. Parvos. – e sem transição - Tu já sabias aquilo dos bebés na barriga das mães? E ele a olhar para mim e a rir só com os olhos, já. E eu, e como é que vão para lá. Ele entretido a raspar a terra da sola da alpercata com um pauzinho, é melhor não te contar, mas olha que eu sei. Eu, conta-me lá. Não conto nada, pede à Lídia, já te disse no outro dia que ela também sabe. E olha, a tua mãe não te diz de certeza, a minha nunca me disse.  E foi-se embora a assobiar.         Voltei devagar sobre os meus passos, a pensar que tinha caído dentro de um segredo. Só não entendia a razão de ninguém mo contar. Decidi: ia perguntar a Lídia.
Entretanto, a minha amiga mudara de casa e vivia no sentido oposto a nós. Mas, à saída da escola, acompanhava-nos a caminho de casa da avó e, à boca da noite,  ainda metida nas roupas de trabalho,  a mãe passava e levava-a consigo. A mãe de Lídia era a cozinheira  do rancho e ficava ao fogão, a empurrar para as brasas as panelas de barro que tapava e destapava, a deitar água e verificar cozeduras. Viva a alimentar o lume dentro de uma fumarada cheia de estalidos e labaredas e desarredava panelas à medida que couves e batatas  coziam;  só depois do almoço se juntava ao trabalho do rancho.  O manajeiro condoera na miséria de tanto filho e na velhice daninha que espoldrinhava corpo acima e a aperreava nos trabalhos de enxada. No dia de pagamento, ela, maldizendo idade e má sorte,  invejava sem freio de língua a jorna das outras mulheres, enquanto elas, que se batiam por igual nos golpes da enxada, cobiçavam a paga dos homens que arrecadavam quase o dobro, puta de vida, andamos todo o dia com uma enxada nas mãos, fazemos ombro com eles e recebemos só esta miséria; malvadas mulheres que nem no trabalho têm sorte.
Diariamente, nos chegavam as mulheres, suadas e sujas, em secura e incómodo de cabelos pegados ao rosto, a pele um resíduo sob o suor e o pó que chapéus e lenços não evitavam, mãos encardidas e calejadas. Sem um tostão no bolso. Tudo que ganhavam evaporava a abater a conta da mercearia. Contrapúnhamos a professora rosada e cheirosa, nariz empinado, sapato de salto e meia de vidro, lábios pintados e um porta moedas de malha metálica que abria como um vaso e deixava ver uma sofreguidão de moedas, o Luís a escolher uma ou duas para ir aos mandados ou a abrir-lhe a boca redonda para deixar o troco. E não havia garota que não quisesse a profissão: íamos todas ser professoras.
       Naquele ano, Lídia esquivava-se a mim em manobras de enguia e tive alguma dificuldade em convencê-la a ficar comigo um bocadinho, antes de seguir para a avó. Valeu-me o poder do bolo de laranja - a mãe não lhe fazia bolos. Depois de devastar umas quantas fatias, recuperou o antigo à vontade. Perguntei-lhe se queria brincar com os meus brinquedos e quando negou, ataquei, a tua irmã está de barriga...e ela, pois está, mas eu quando briguei com o Luís pensava mesmo que era mentira. Olhei-a a acusar, o Luís diz que sabes como é que os bebés vão parar lá dentro. E ela a sacudir as migalhas de bolo na bata, é a foder, mas eu já experimentei com ele e a barriga não me cresceu. Nunca tinha ouvido aquela palavra e perguntei-lhe isso é o quê? Ela a olhar-me sincera e meio penalizada,  depois já não queres ser minha amiga, vais-te zangar comigo, foi por isso que eu não te contei. E numa decisão de tudo ou nada, olha, é assim, a gente despe-se e deita-se e ele põe-se em cima da gente e misturamos as coisas de mijar. De repente, pôs-se a olhar-me séria e de alto e desdenhou, só tu é que não experimentaste. Nada incomodada, atardei-me um bocadinho a pensar. Aquilo desinteressava-me, não gostava nem tinha habilidade para me despir, fazia birras de léguas para me tirarem um vestido, arrepelava-me os cabelos. Desajeitada, estrebuchava numa aflição, presa dentro da roupa, a choramingar, não consigo sair, não sou capaz de tirar os braços, não vejo nada. 

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