sábado, 19 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

À medida que avançávamos nas classes escolares, íamos alargando a malha da realidade e intuindo, ou mesmo sabendo, a dimensão das nossas possibilidades dentro dela. Cada um adaptava o sonho a si e ninguém desejava ser trabalhador rural, como víamos toda a gente escrever no rectângulo da profissão. O trabalho rural não era escolha, era o castigo dos pobres. E queríamos fugir ao castigo. Os nossos pais aspiravam que lhe fugíssemos, sem antever como. Mas também isso ignorávamos. 
Portanto, a maioria dos rapazes passou a escrever nas redacções  que queria ser tractorista, barbeiro, carpinteiro, em vez de médico, dono de mercearia ou de herdade, supostas profissões que conheciam. No seu bom senso, Luís mantinha-se a meia haste, e lembrando-se do gosto por comboios, escrevia, vou ser agulheiro, depois estudo e chego a chefe de estação. Eu e Lídia passámos a acompanhá-lo nas viagens que fazia até às agulhas, lugar onde as linhas se cruzavam no que me parecia um emaranhado de carris, de que, sapiente e cheio de pormenor, nos explicava o funcionamento através da alavanca que ali se encontrava para definir os trilhos.  Mais tarde, nós viradas uma à outra, não é uma agulha de coser, é uma alavanca pesada que muda os carris para o comboio poder passar sem chocar com os outros que vêm de frente. E rimos sem descanso do que tínhamos imaginado ser o trabalho do agulheiro. Passámos a olhá-lo com novo respeito, quando se montava na bicicleta a pedal para, sem cair, seguir pela estreiteza que beirava a linha até à agulha, a fim de mudar-lhe o sentido. Depois, enquanto as mães labutavam julgando que brincávamos por perto, mal o agulheiro terminava, facto que espreitávamos sem cessar e de que conhecemos horário, corríamos desabalados até à estação a observar a concretude da mudança. Atravessávamos numa corrida a cancela fechada  e postávamo-nos no deserto da gare, onde só o chefe de estação pontuava, qual oficial na parada, farda e boné de pala, a bandeira vermelha estendida à via férrea, a fazer parar o monstro. Após uns minutos, apanhados pela nuvem de vapor que nos invadia desde as pernas, despedíamo-nos do comboio na semi ilusão de fazermos parte do quadro, o chefe da estação com a bandeira sob o braço e a ralhar-nos, ainda assim algum não caísse à linha. Na mão direita, o apito esperava a deixa enquanto  os revisas subiam e fechavam portas de carruagem. Debruçado na janela, o maquinista aguardava. Ao sinal de partida, saia da janela e o comboio, em obediência à estrídula invectiva  do assobio, como que estremecia e, ainda trôpego, abalançava a mexer-se  recomeçando a chiadeira nas rodas de ferro. E nós, felizes e maltrapilhos, fazíamos adeus aos viajantes que seguiam para Lisboa, imaginando-lhes vidas ímpares e soalheiras, carteiras que se abriam cheias de notas, vestidos e fatos a esmo. Não púnhamos no comboio quem lá ia, plasmávamos o nosso sonho, a nossa ilusão acerca do mundo dos outros. 
Jamais nos ocorreram os passageiros como nós, contando miséria, a visitar família chegada em hospitais da capital, pessoas simples numa aflição que se derramava pelo esófago, faringe, laringe, traqueia e sabe-se lá que outros canais interiores. Gente que carregava sustos descontrolados no garrido polvoró de ruas movimentadas e desconhecidas. Os homens no desconforto do colete abotoado até ao pescoço, de olho no relógio de algibeira que a gatunagem, ouvia-se, era mais que muita. As mãos das mulheres guardando  a palha da balalaica como se fora pedraria fina. Lá dentro, a panelinha de canja que acabidavam maternais, para não entornar; uma muda de roupa interior barata e comprada à pressa para o doente, porque a mais estava puída e pontinhada; o pincel de barba descorado e quase careca e a lâmina pedida de empréstimo a um vizinho. Tudo embrulhado numa toalha de rosto bem limpa, para escanhoar o doente, que barbear no hospital  era pago à parte e dinheiro não havia. Pedira-se um empréstimo ao merceeiro para a viagem, levava-se uma bucha para entreter o estômago revolvido de nervos e bolandas, e que o futuro  fosse como Deus Nosso Senhor quisesse. Nisto, eu e Lídia não pensávamos. Não podíamos enxergar.
 Víamos os tropas fardados, de pé, mesmo por detrás das portas de entrada das carruagens e pasmávamos do aprumo e beleza do porte. Por vezes, saíam para a gare a ajudar alguém a descer ou entrar, bivaque na mão. E só lhes admirávamos a delicadeza. Não nos ocorria a saudade e mau estar que carregavam consigo e não os deixava sentar; não lhes  lobrigávamos no fundo alheado da íris o desconforto da farda; a saudade ao cheiro de casa e ao canto da enxerga que lhes aguentava corpo e sonho; não notámos o receio da vida de tropa e do sofrimento que lhes trazia, arrasto de gente maldosa e mais instruída que os achincalhava e fazia gato sapato e a quem eles, de paga, também enganavam quanto podiam; não víamos a lembrança da namorada nos olhos que sorriam às raparigas e se lhes arrastavam como lesmas pela figura. Ainda ignorávamos que a vida é toda muito igual para demasiada gente. 
Enquanto os rapazes peregrinavam  os sonhos, nós, as raparigas, perante a incredulidade sofrida dos risos maternos, concluíamos que nos era impossível ser professoras e enveredámos quase todas por cabeleireira e costureira. Só a minha parceira manteve o gosto pela enfermagem, acrescentando a desculpa que já dizíamos com ela, "é por causa da mão que não funciona" - e acrescentava com algum receio -. Não sei é se me aceitam. 
 Quando perguntei a Lídia o que tinha escrito, ela virou-se resoluta e disse rápida, páraquedista. Atonitei. Mas depois do rastilho a que ela mesma pegou fogo e de um intervalo de hora de almoço cheio de perguntas e explicações, todas em monte a rodeá-la, ficámos cientes que um páraquedista era alguém que se atirava de um avião em  voo,  com uma espécie de guarda chuva fechado atado à cintura por cordas grossas e fivelas fortes, e que, por força de ser assim, só abria passado um bocado de trambolhões no ar. Por semanas e semanas, Lídia foi a nossa heroína. Nem aquela garota que chegara há pouco tempo, a ultrapassou. Era tão quêda que a julgámos muda. E numa manhã mais contrita, a professora afirmou com gáudio, como se coisa de vulto, a  Luciana quer ser freira. Foi estranho. Olhámo-la em avaliação severa. Mas nenhuma freira chegava perto da coragem da nossa pára quedista

Sem comentários:

Enviar um comentário