A
princípio, mau grado a juventude da mestra, e a despeito de o não confessarmos,
todos chorávamos o jeito manso e comedido da professora do ano anterior. Mas a
saudade é um sentimento de suave tristeza que nos bate em momentos quietos, e a
nova professora era um pandemónio a estrear, não nos dava tempo para suavidades
extra. Ou seria a vida na sua violência de hora sobre hora que ocupava com
método todos os escaninhos. Vivíamos à beira do naufrágio, no temor do
incumprimento, assoberbados pelo amontoado de pormenores e exigências que nos travava
lembranças. Nas primeiras semanas, a sala passou do zunzum habitual ao silêncio cortado pela aspereza esganiçada da mestra. Lídia e outros alunos mudaram de
carteira por desconfianças da professora sobre copianço e eu ganhei uma
parceira loira de olho azul que o pai trazia até à escola num despacho
motorizado que, garantia o Luís, carburava mal do cano de escape, olha p’aquilo,
olha pá cor do fumo, não tás a ver. E eu que só via fumo, punha um ar entendido
e abanava a cabeça, pois é. A minha atitude deixava-o contente e, a escorrer confiança,
ia contar aos outros. A nova parceira era despachada, tinha um braço maior que
o outro e mostrava-nos a assimetria a esticar os dois, o menor involuindo como criança
tímida e ela a pegar a mão inerte com a outra e a elucidar, neste não tenho
força nenhuma, tive uma paralisia. Apesar do seu braço quase parado, Maria Laura
desenhava melhor que a professora. Se faltava um desenho, Maria Laura vem ao
quadro e desenha uma árvore com um ninho ali no canto direito, põe-te em cima da
cadeira que eu quero passar a cópia no quadro. E a Laura sorria-me a levantar-se, arrastava até ao estrado a cadeira encostada à parede, subia e, e em dois ou três
riscos, satisfazia o pedido. Nós pasmados da habilidade. E ela, minha senhora
posso fazer um passarinho com o bico aberto? A professora displicente, a mirar
o verniz das unhas em labareda, faz lá e depois vai-te sentar. E para nós, que é que estão
a olhar, não têm que fazer?, e punha a mão sobre a régua. Havia o baixar de
cabeças regulamentar que, mal ela se concentrava na brancura da mão erguida, a observá-la ao feixe de luz da janela, aprumavam em sincronia de desenho animado,
trejeitos só de lábios, soletrando em risonha satisfação, o passarinho.
Enquanto
por isto e aquilo a professora enrijecia as classes a reguadas, as mães iam à
escola afirmar o que contrariavam em casa se nos viam de mãos vermelhas e inchadas
de vergões a arroxear, arreie-lhe pra cima minha senhora, que é o que é preciso;
só se perdem as que caem no chão. Motu próprio e instada por invectivas que lhe
precaviam a sorte, a professora banalizou os castigos e a régua tornou-se parte
da nossa vida: se havia brigas, se não fazia os trabalhos de casa, se não
estudava a lição em casa, se dava mais que três erros no ditado, se não
obedecia, se não aprendia, se a professora estava de mau humor. Havia gente que sofria a régua
duas e três vezes no dia. A mesma gente, todos os dias. Nos intervalos,
mostrávamos as mãos uns aos outros a cochichar o sonho de concretizarmos a
formula mágica: untar a mão com azeite, esconder um cabelo numa das linhas que a percorriam e oferecê-la ao
castigo. Sem conhecimento de facto, conencíamo-nos uns aos outros, era “remédio santo”; juntos numa palma, azeite e cabelo quebravam até uma viga; e antegozávamos o momento, dava-nos
uma reguada e zás, mal a régua batia na mão, toda se estraçalhava. Em discussões açodadas com o Luís, eu desconfiava do disfarce, dado que, talvez incúria minha, experimentava e não conseguia esconder um cabelo na mão aberta, mas ele retorquia que tinha de ser um cabelo loiro, que disfarçava melhor e eu descansava, a minha parceira não se ia importar de tirar um cabelo. Mas, e apesar dela ter anuído, nunca
aconteceu e nem sequer experimentámos a receita. Continuámos pelos anos a
sofrer as palmatoadas, as mães nas costas da professora, precisa é de uma
queixa à inspecção, é má como as cobras; tão pequenina e tão má. Enquanto isso, alguns de nós a bater com a cabeça na ardósia por erro nas contas de dividir ou enganos na tabuada e um galo a inchar na testa. A professora assustada, Luís vai lá molhar-lhe a testa com água. Ou punha-nos de pé virados à parede dos mapas, horas esquecidas, uma perna a descansar de cada vez. Até que tomávamos coragem, e sem nos virarmos, minha senhora já me posso sentar, e ela, ainda aí estás? senta-te. Os mais tímidos aproveitavam a professora virada ao quadro e faziam sinal ao Luís; ele acudia de boa mente, minha senhora o fulano de tal já está há mais de uma hora de castigo. Ela nem se virava e lançava-nos um, senta-te, que nos comprazia mais que copo de água em torrina de Agosto.
Por
essa altura, desgostosa, Lídia desinteressou da escola. Retaliava castigos com faltas, atrasou-se nas contas e nos ditados, irritava a professora com a sua passividade nunca vista e vivia amorfa e atrasada para a escola, a encher as manhãs com justificações que a professora desdenhava. No fim do ano
não passou de classe. Entretanto, a meio do ano, numa vingança cinzenta, cortara os caracóis. Continuava baixinha e
resmungava o tempo todo comigo e com o Luís se preferíamos fazer primeiro os
trabalhos em vez de brincar. Ao invés dela, eu tornava-me aplicada e boa aluna
e a professora deixava-me vogar entre as revistas infantis que comprava e
atulhavam a chaminé da sala. O Luís fez-se um garoto obediente e a professora
descansava nele muitas tarefas, Luís, rega-me as flores; Luís, vai-me comprar
pão; Luís, o meu relógio parou, vai à mercearia perguntar as horas. Mas o que
mais gostávamos era quando a professora lhe pedia, segura lá o espelho para ver
a minha garganta. E deitava a língua de fora a observar as amígdalas. Em seguida, tirava-lhe o espelho, fechava-o com um estalido e ordenava antes de esticar a língua e parecer um cão encalorado, vê lá se tenho pontos brancos. E ele sábio, um raio de pesar admirado, hiiiii....está cheinha minha senhora. Esses eram os nossos momentos altos e de descanso. Aquela
professora que achávamos tão má, mal adoecia ou pensava em estar doente,
tornava-se um anjo. E a régua ficava parada na mesa. Dias a fio. Mal a saúde
retornava, logo voltava às mãos na mesma fervura e nos ensurdecia de batidas raivosas na pobre secretária, como se as nossas diabruras fossem a causa de todo o mal na galáxia.
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