terça-feira, 15 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

A princípio, mau grado a juventude da mestra, e a despeito de o não confessarmos, todos chorávamos o jeito manso e comedido da professora do ano anterior. Mas a saudade é um sentimento de suave tristeza que nos bate em momentos quietos, e a nova professora era um pandemónio a estrear, não nos dava tempo para suavidades extra. Ou seria a vida na sua violência de hora sobre hora que ocupava com método todos os escaninhos. Vivíamos à beira do naufrágio, no temor do incumprimento, assoberbados pelo amontoado de pormenores e exigências que nos travava lembranças. Nas primeiras semanas, a sala passou do zunzum habitual ao silêncio cortado pela aspereza esganiçada da mestra. Lídia e outros alunos mudaram de carteira por desconfianças da professora sobre copianço e eu ganhei uma parceira loira de olho azul que o pai trazia até à escola num despacho motorizado que, garantia o Luís, carburava mal do cano de escape, olha p’aquilo, olha pá cor do fumo, não tás a ver. E eu que só via fumo, punha um ar entendido e abanava a cabeça, pois é. A minha atitude deixava-o contente e, a escorrer confiança, ia contar aos outros. A nova parceira era despachada, tinha um braço maior que o outro e mostrava-nos a assimetria a esticar os dois, o menor involuindo como criança tímida e ela a pegar a mão inerte com a outra e a elucidar, neste não tenho força nenhuma,  tive uma paralisia.  Apesar do seu braço quase parado, Maria Laura desenhava melhor que a professora. Se faltava um desenho, Maria Laura vem ao quadro e desenha uma árvore com um ninho ali no canto direito, põe-te em cima da cadeira que eu quero passar a cópia no quadro. E a Laura sorria-me a levantar-se, arrastava até ao estrado a cadeira encostada à parede, subia e, e em dois ou três riscos, satisfazia o pedido. Nós pasmados da habilidade. E ela, minha senhora posso fazer um passarinho com o bico aberto? A professora displicente, a mirar o verniz das unhas em labareda, faz lá e depois vai-te sentar. E para nós, que é que estão a olhar, não têm que fazer?, e punha a mão sobre a régua. Havia o baixar de cabeças regulamentar que, mal ela se concentrava na brancura da mão erguida, a observá-la ao feixe de luz da janela, aprumavam em sincronia de desenho animado, trejeitos só de lábios, soletrando em risonha satisfação, o passarinho.
Enquanto por isto e aquilo a professora enrijecia as classes a reguadas, as mães iam à escola afirmar o que contrariavam em casa se nos viam de mãos vermelhas e inchadas de vergões a arroxear, arreie-lhe pra cima minha senhora, que é o que é preciso; só se perdem as que caem no chão. Motu próprio e instada por invectivas que lhe precaviam a sorte, a professora banalizou os castigos e a régua tornou-se parte da nossa vida: se havia brigas, se não fazia os trabalhos de casa, se não estudava a lição em casa, se dava mais que três erros no ditado, se não obedecia, se não aprendia, se a professora estava de mau humor. Havia gente que sofria a régua duas e três vezes no dia. A mesma gente, todos os dias. Nos intervalos, mostrávamos as mãos uns aos outros a cochichar o sonho de concretizarmos a formula mágica: untar a mão com azeite, esconder um cabelo numa das linhas que a percorriam e oferecê-la ao castigo.  Sem conhecimento de facto, conencíamo-nos uns aos outros,  era “remédio santo”; juntos numa palma, azeite e cabelo quebravam até uma viga; e antegozávamos o momento, dava-nos uma reguada e zás, mal a régua batia na mão, toda se estraçalhava. Em discussões açodadas com o Luís, eu desconfiava do disfarce,  dado que, talvez incúria minha, experimentava e não conseguia esconder um cabelo na mão aberta, mas ele retorquia que tinha de ser um cabelo loiro, que disfarçava melhor e eu descansava, a minha parceira não se ia importar de tirar um cabelo. Mas, e apesar dela ter anuído, nunca aconteceu e nem sequer experimentámos a receita. Continuámos pelos anos a sofrer as palmatoadas, as mães nas costas da professora, precisa é de uma queixa à inspecção, é má como as cobras; tão pequenina e tão má. Enquanto isso, alguns de nós a bater com a cabeça na ardósia por erro nas contas de dividir ou enganos na tabuada e um galo a inchar na testa. A professora assustada, Luís vai lá molhar-lhe a testa com água. Ou punha-nos de pé virados à parede dos mapas, horas esquecidas, uma perna a descansar de cada vez. Até que tomávamos coragem, e sem nos virarmos, minha senhora já me posso sentar, e ela, ainda aí estás? senta-te. Os mais tímidos aproveitavam a professora virada ao quadro e faziam sinal ao Luís; ele acudia de boa mente, minha senhora o fulano de tal já está há mais de uma hora de castigo. Ela nem se virava e lançava-nos um, senta-te, que nos comprazia mais que copo de água em torrina de Agosto.

Por essa altura, desgostosa, Lídia desinteressou da escola. Retaliava castigos  com faltas, atrasou-se nas contas e nos ditados, irritava a professora com a sua passividade nunca vista e vivia amorfa e atrasada  para a escola, a encher as manhãs com justificações que a professora desdenhava. No fim do ano não passou de classe. Entretanto, a meio do ano, numa vingança cinzenta, cortara os caracóis. Continuava baixinha e resmungava o tempo todo comigo e com o Luís se preferíamos fazer primeiro os trabalhos em vez de brincar. Ao invés dela, eu tornava-me aplicada e boa aluna e a professora deixava-me vogar entre as revistas infantis que comprava e atulhavam a chaminé da sala. O Luís fez-se um garoto obediente e a professora descansava nele muitas tarefas, Luís, rega-me as flores; Luís, vai-me comprar pão; Luís, o meu relógio parou, vai à mercearia perguntar as horas. Mas o que mais gostávamos era quando a professora lhe pedia, segura lá o espelho para ver a minha garganta. E deitava a língua de fora a observar as amígdalas. Em seguida, tirava-lhe o espelho, fechava-o com um estalido e ordenava antes de esticar a língua e parecer um cão encalorado, vê lá se tenho pontos brancos. E ele sábio, um raio de pesar admirado, hiiiii....está cheinha minha senhora. Esses eram os nossos momentos altos e de descanso. Aquela professora que achávamos tão má, mal adoecia ou pensava em estar doente, tornava-se um anjo. E a régua ficava parada na mesa. Dias a fio. Mal a saúde retornava, logo voltava às mãos na mesma fervura e nos ensurdecia de batidas raivosas na pobre secretária, como se as nossas diabruras fossem a causa de todo o mal na galáxia.

Sem comentários:

Enviar um comentário