quinta-feira, 17 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Perguntei naturalmente, e onde é que vocês fazem isso? Ela, ninguém pode ver, os crescidos também fazem, mas não querem que a gente faça. Eu a teimar, onde é que é? E ela depois de um silêncio, olhos de confissão, atrás da tua barraca. Revolvi em admiração enojada, o quê????!  Ao pé do monturo para onde atiramos tudo, até os penicos de chichi e cocó que eu levo a esticar muito os braços e sem respirar? E ela, sim, ali ninguém vai...Eu de polícia, inquisitiva, e quando é que vão para lá? E ela, às vezes estava a brincar contigo e dizia que ia mijar ou a casa da minha avó e íamos para trás da barraca eu o Luís, não davas por isso? Eu desconsolada com o engano, não. – e duvidosa -   Tu gostas? Ela casquinou superior, não é como brincar com as bonecas, é de verdade. – e acrescentou convicta - Gosto mais porque é às escondidas. Em Lídia a provocação é natureza a irromper. As bandeiras que agita não lhe interessam tanto pelas causas que representam como por serem bandeiras vistas à distância. E ser a sua mão a empunhá-las. Isso sim, importava-lhe bastante. De início, a nossa união dependia desse impulso que ela dava à vida, do agitar de águas que a iluminava e eu retinha sem copiar. Lídia nunca me foi modelo ou sequer lhe invejei o espírito a tentar igualá-lo. Pertencer a uma condição retira-nos a inveja do possível, aquilo por que cada homem porfia a vida toda é, cada vez mais, ser ele. Só quem não se sabe assim ou confunde o ramo a que pertence, sofre o mal da inveja de carácter. Em nós duas, o tempo paciente ajudou a cumprir a sapiência  do respeito mútuo, dispensou-nos de comparações estéreis. Sinto por ela como por ninguém a admiração do risco, a sua inquietude sempre tão por fora, água que forceja em chegar e esbaforida se despenha enquanto eu corro subterrânea e não caudalosa. Ela alimenta turbinas transformadoras e energéticas, eu corro simplesmente.
Na altura, garanti-lhe a desfazer púdicos e, na minha óptica, impensáveis temores, está descansada, não vou lá espreitar.  – e depois, cortando-lhe outra fatia para o caminho, reguei, a florir-lhe a confiança - eu gosto o mesmo de ti, não me faz diferença. E era verdade, gostava dela assim e nem a conhecia de outro modo. Estava-lhe grata, tinha-me esclarecido. O preço do saber foi sentir-me enganada, mas na vida não há os bónus que pensamos, ela cobra-nos em qualquer altura. Porém,  o objectivo dos dois estava fora dos meus interesses, eu vivia no coração do mundo e eles  na cintura externa.
Contudo, no dia seguinte a caminho da escola, invectivei o Luís. Ele suspirou, ciente de que eu conhecia toda a história. Parou de mala na mão, um olhar reticente à flor dos olhos, juro que é verdade e nunca mais te digo isto: eu não gosto delas, era contigo que eu queria... E eu,  não me interessa, vamos embora. E recomeçámos a andar falando  de tudo e nada.
Passado um ror de tempo, entrava eu em casa, ouvi o alerta das tias velhas a minha mãe, tu tem cuidado com a garota que o malandro vai para trás da barraca com as gaiatas que apanha a jeito; outro dia estava lá com uma e tivemos que os desabelhar. Saí em pezinhos de algodão e quando voltei a entrar  a conversa versava assunto de menos nervura.
Ao serão, minha mãe no seu discurso de voz suave, que talvez não fosse assim tão bom brincar com rapazes e se já alguma vez o Luís... e eu num descanso, brincávamos muito, mas nunca lhe ouvira tal assunto; eu gostava dele e desinteressava-me que fosse rapaz; era com quem brincava mais e me tratava melhor.
Não menti.
Quanto às traseiras da barraca, cumpri o prometido: não olhar, evitar o monturo e seguir cantando se precisava deixar o lixo. Jamais encontrei diferença no montão de estrume. Entretanto, seguimos a vida que forcejava outros sentidos e o que aconteceu cristalizou em  lampejo de natureza e época, natural como o surgir e desaparecer das flores e dos frutos. Em trio e a duo, ainda vivemos anos de imperturbável brincadeira.



Sem comentários:

Enviar um comentário